sábado, 8 de agosto de 2015
Princípio da intranscendência subjetiva das sanções
sábado, 8 de agosto de 2015
Imagine a seguinte situação
adaptada:
O Estado de Pernambuco celebrou
convênio com a União por meio do qual recebeu determinadas verbas para realizar
projetos de interesse público no Estado, assumindo o compromisso de prestar
contas da utilização de tais valores perante a União e o TCU.
Ocorre que o Estado não prestou
contas corretamente, o que fez com que a União o inserisse no CAUC.
Com a inscrição no CAUC, o
Estado-membro ficou impedido de contratar operações de crédito, celebrar convênios
com órgãos e entidades federais e receber transferências de recursos.
Antes de prosseguirmos, o que é o
CAUC?
CAUC é a sigla de Cadastro Único
de Exigências para Transferências Voluntárias.
O CAUC é um instrumento de
consulta, por meio do qual se pode verificar se os Estados-membros ou
Municípios estão com débitos ou outras pendências perante o Governo federal.
O CAUC é alimentado com as
informações constantes em bancos de dados como o SIAFI e o CADIN.
Se houver, por exemplo, um atraso
do Estado ou do Município na prestação de contas de um convênio com a União ou
suas entidades, essa informação passará a figurar no CAUC e ele ficará impedido
de receber verbas federais.
Em uma alegoria para que você
entenda melhor (não escreva isso na prova!), seria como se fosse um “Serasa” de
débitos dos Estados e Municípios com a União, ou seja, um cadastro federal de
inadimplência.
Ação proposta pelo Estado-membro
O Estado-membro não concordou com
a inscrição no CAUC e ajuizou ação ordinária contra a União questionando essa
inclusão.
Os dois principais argumentos da
ação proposta foram os seguintes:
a) Violação ao devido processo
legal, pois houve inscrição no referido cadastro sem que o TCU tenha encerrado
a tomada de contas especial instaurada para apurar o fato;
b) Violação ao princípio da
intranscendência subjetiva das sanções, uma vez que o inadimplemento ocorreu em
gestão anterior (era outro Governador).
Vejamos agora algumas questões
jurídicas envolvendo o tema:
Quem será competente para julgar
essa ação?
O STF, nos termos do art. 102, I,
“f”, da CF/88:
Art. 102. Compete ao
Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar,
originariamente:
f) as causas e os
conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre
uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;
Toda ação envolvendo União e
Estados em polos distintos será julgada originariamente pelo STF com base no
art. 102, I, “f”, da CF/88?
NÃO.
Para se caracterizar a hipótese
do art. 102, I, “f”, da CF/88, é indispensável que, além de haver uma causa
envolvendo União e Estado, essa demanda tenha densidade suficiente
para abalar o pacto federativo. Em outras palavras, não é qualquer causa
envolvendo União contra Estado que irá ser julgada pelo STF, mas somente quando
essa disputa puder resultar em ofensa às regras do sistema federativo. Confira
trecho de ementa que revela essa distinção:
“Diferença entre conflito entre
entes federados e conflito federativo: enquanto no primeiro, pelo prisma
subjetivo, observa-se a litigância judicial promovida pelos membros da
Federação, no segundo, para além da participação desses na lide, a
conflituosidade da causa importa em potencial desestabilização do próprio pacto
federativo. Há, portanto, distinção de magnitude nas hipóteses aventadas, sendo
que o legislador constitucional restringiu a atuação da Corte à última delas,
nos moldes fixados no Texto Magno, e não incluiu os litígios e as causas
envolvendo Municípios como ensejadores de conflito federativo apto a exigir a
competência originária da Corte.” (STF. Plenário. ACO 1.295-AgR-segundo, Rel.
Min. Dias Toffoli, julgado em 14/10/2010).
Mero conflito entre
entes federados
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Conflito federativo
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Trata-se da disputa judicial
envolvendo União (ou suas entidades) contra Estado-membro (ou suas
entidades).
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Trata-se da disputa judicial
envolvendo União (ou suas entidades) contra Estado-membro (ou suas entidades)
e que, em razão da magnitude do tema discutido, pode gerar uma
desestabilização do próprio pacto federativo.
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Ex: disputa entre a União e o
Estado por conta de um aluguel de um imóvel.
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Ex: ação proposta pelo Estado
questionando sua indevida inclusão no CAUC, o que tem gerado o fim de
repasses federais.
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Em regra, é julgado pelo juiz federal de 1ª instância.
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É julgado pelo STF (art. 102,
I, “f” da CF/88).
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No caso concreto, o STF entendeu
que ele era competente para a ação. Isso porque, além da presença, em polos
distintos, de Estado-membro e União, estava em jogo a inscrição do ente local
em cadastro federal de inadimplência, o que impedia que ele contratasse operações
de crédito, celebrasse convênios e recebesse transferências de recursos. Essa
situação revela possível abalo ao pacto federativo, já que está mitigando
(enfraquecendo) a autonomia do Estado-membro, a ensejar a incidência do art.
102, I, “f”, da CF/88.
Em tese, é possível que a União
inscreva Estado-membro em cadastro federal de inadimplentes, como é o caso do
CAUC ou do SIAFI?
SIM. A princípio, não existe
qualquer ilegalidade no fato de a União proceder à inscrição do órgão ou ente
(o qual se mostre inadimplente em relação a débitos ou deveres legais) nos
cadastros de restrição. Também não há qualquer ilegalidade no fato de a União
se recusar a celebrar convênios ou prestar garantias para entes públicos que estejam
nessa situação.
No caso concreto, houve violação
ao princípio do devido processo legal? Para que o Estado-membro seja incluído
no cadastro restritivo, é necessário o encerramento do procedimento instaurado
pelo TCU?
SIM. Viola o princípio do devido
processo legal a inscrição de unidade federativa em cadastros de inadimplentes
antes de iniciada e julgada tomada de contas especial pelo Tribunal de Contas
da União (STF. 1ª Turma. ACO 2.159-MC-REF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de
02/06/2014).
Em casos como esse, mostra-se
necessária a tomada de contas especial e sua respectiva conclusão, a fim de reconhecer
que houve realmente irregularidades. Só a partir disso é possível a inscrição do
ente nos cadastros de restrição ao crédito organizados e mantidos pela União.
O que é o princípio da
intranscendência subjetiva das sanções? No caso concreto, houve violação a esse
princípio?
SIM. O princípio da intranscendência
subjetiva impede que sanções e restrições superem a dimensão estritamente
pessoal do infrator e atinjam pessoas que não tenham sido as causadoras do ato
ilícito.
Assim, o princípio da
intranscendência subjetiva das sanções proíbe a aplicação de sanções às
administrações atuais por atos de gestão praticados por administrações
anteriores.
A inscrição do Estado de
Pernambuco no CAUC ocorreu em razão do descumprimento de convênio celebrado por
gestão anterior, ou seja, na época de outro Governador. Ademais, ficou
demonstrado que os novos gestores estavam tomando as providências necessárias para
sanar as irregularidades verificadas.
Segundo o Min. Luiz Fux, “não se
pode inviabilizar a administração de quem foi eleito democraticamente e não foi
responsável diretamente pelas dificuldades financeiras que acarretaram a
inscrição combatida”.
Logo, deve-se aplicar, no caso
concreto, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções, impedindo que a
Administração atual seja punida com a restrição na celebração de novos convênios
ou recebimento de repasses federais.
Outro exemplo de aplicação do
princípio
Além do caso acima explicado, o
princípio da intranscendência subjetiva das sanções pode ser aplicado também
nas situações em que uma entidade estadual/municipal (ex: uma autarquia) descumpriu
as regras do convênio e a União inscreve não apenas essa entidade, como também
o próprio ente (Estado/Município) nos cadastros restritivos. Nesse sentido:
(...) O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de
ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Em virtude
desse princípio, as limitações jurídicas que derivam da inscrição, em cadastros
públicos de inadimplentes, das autarquias, das empresas governamentais ou das
entidades paraestatais não podem atingir os Estados-membros, projetando, sobre
estes, consequências jurídicas desfavoráveis e gravosas, pois o inadimplemento
obrigacional – por revelar-se unicamente imputável aos entes menores integrantes
da administração descentralizada – só a estes pode afetar.
Os Estados-membros e o
Distrito Federal, em consequência, não podem sofrer limitações em sua esfera
jurídica, motivadas pelo só fato de se acharem administrativamente vinculadas a
eles as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu
poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e
que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (CAUC, SIAFI,
CADIN, v.g.). (...)
(STF. Plenário. ACO 1848
AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06/11/2014)