Dizer o Direito

sábado, 11 de julho de 2015

Breves comentários sobre a Lei 13.144/2015, que altera a Lei do Bem de Família



Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada esta semana mais uma importante novidade legislativa.

Trata-se da Lei n.° 13.144/2015, que alterou a Lei do Bem de Família.

Antes de verificar o que mudou, vamos relembrar em que consiste o bem de família.

BEM DE FAMÍLIA

Espécies de bem de família
No Brasil, atualmente, existem duas espécies de bem de família:
a) Bem de família convencional ou voluntário (previsto nos arts. 1711 a 1722 do Código Civil);
b) Bem de família legal (instituto regulado pela Lei nº 8.009/90).

Bem de família legal
Bem de família legal é...
- uma proteção conferida pela Lei n.° 8.009/90
- por meio da qual um único imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar
- é considerado, em regra, impenhorável
- e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer outra natureza,
- salvo nas hipóteses previstas na Lei nº 8.009/90.

Em outras palavras, a Lei n.° 8.009/90 considera que o imóvel (só um) pertencente à família ou à entidade familiar não pode ser, em regra, penhorado para pagamento de dívidas, salvo nas hipóteses excepcionais previstas no art. 3º da Lei.

Apesar do nome “bem de FAMÍLIA”, o objetivo real do instituto é assegurar o direito constitucional à moradia, tanto que esse direito existe mesmo que a pessoa more só. A nomenclatura mais adequada do instituto deveria ser “bem de moradia” (mas deixa isso para lá...).

Hipóteses excepcionais em que o bem de família pode ser penhorado
O art. 3º da Lei n.° 8.009/90 traz uma lista de incisos com as hipóteses em que o bem de família legal pode ser penhorado.

Dívidas de pensão alimentícia
Se a pessoa tem a obrigação de pagar pensão alimentícia e não o faz, o seu bem de família poderá ser penhorado para saldar essa dívida?
SIM. A Lei n.° 8.009/90 previu que uma das exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família são justamente as dívidas de pensão alimentícia. Em outras palavras, o devedor de pensão alimentícia não poderá invocar a impenhorabilidade decorrente do bem de família. Se ele não pagar, sua casa ou apartamento poderão ser penhorados e levados à alienação judicial.
Isso sempre esteve previsto na Lei n.° 8.009/90, no inciso III do art. 3º.

O que fez, então, a Lei n.° 13.144/2015?
A Lei n.° 13.144/2015 alterou a redação do inciso III do art. 3º, prevendo uma ressalva.
A redação passou a ser a seguinte:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;

Vamos entender com calma.

O panorama atual com a Lei n.° 13.144/2015 é o seguinte:


REGRA:
Se o indivíduo for devedor de pensão alimentícia, o bem de família que a ele pertencer poderá ser penhorado para pagar a dívida.



RESSALVA:
Se o(a) devedor(a) for casado(a) ou viver em união estável e seu cônjuge ou companheiro(a) também for proprietário do bem de família, deverá ser respeitada a parte do imóvel que pertencer a esse cônjuge ou companheiro.

Ex: João e Maria são casados em regime de comunhão universal de bens; João deve pensão alimentícia para seu filho, fruto de outro relacionamento anterior; se ele não pagar, a casa em que mora com Maria poderia, em tese, ser penhorada; no entanto, Maria é meeira desse imóvel, ou seja, tem direito à metade do bem; logo, o novo inciso III diz que deverão ser “resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário”; deverão ser resguardados os direitos de Maria sobre o bem.


O que significa resguardar os direitos do coproprietário sobre o bem? Em nosso exemplo, o que significa resguardar os direitos de Maria sobre o bem?
Significa que não poderá ser penhorada a parte do imóvel que pertence ao coproprietário. Em nosso exemplo, não se poderá penhorar metade do imóvel porque esta pertence a Maria.

Mas então será permitido penhorar a outra parte? O juiz poderá determinar a penhora da metade da casa que pertence a João? É possível levar o imóvel à alienação judicial e depois entregar metade do dinheiro para o(a) meeiro(a), com base no art. 655-B do CPC?
Também não. Na prática, o imóvel ficará inteiramente impenhorável e não poderá ser alienado judicialmente para pagar a dívida. Isso porque o STJ entende que, se houver meação do bem de família e se o(a) meeiro(a) não tiver responsabilidade pela dívida, não se poderá alienar a casa porque senão atingiria, indiretamente, o cônjuge/companheiro que não tem nada a ver com o débito. Veja alguns precedentes nesse sentido:

(...) A proteção instituída pela Lei n. 8.009/1990, quando reconhecida sobre metade de imóvel relativa à meação, deve ser estendida à totalidade do bem, porquanto o escopo precípuo da lei é a tutela não apenas da pessoa do devedor, mas da entidade familiar como um todo, de modo a impedir o seu desabrigo, ressalvada a possibilidade de divisão do bem sem prejuízo do direito à moradia. (...)
STJ. 4ª Turma. REsp 1227366/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 21/10/2014.

(...) O imóvel indivisível protegido pela impenhorabilidade do bem de família deve sê-lo em sua integralidade, e não somente na fração ideal do cônjuge meeiro que lá reside, sob pena de tornar inócuo o abrigo legal. (...)
STJ. 4ª Turma. AgRg no REsp 866.051/SP, Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Des. Conv. do TJ/AP), julgado em 25/05/2010.

(...) A impenhorabilidade da meação impede que a totalidade do bem seja alienada em hasta pública. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 931.196/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 08/04/2008.

(...) A impenhorabilidade da fração de imóvel indivisível contamina a totalidade do bem, impedindo sua alienação em hasta pública. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 507.618/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 07/12/2004.

Assim, não se aplica a regra do art. 655-B do CPC 1973 para o caso de o imóvel penhorado ser um bem de família (Art. 655-B. Tratando-se de penhora em bem indivisível, a meação do cônjuge alheio à execução recairá sobre o produto da alienação do bem.)

Desse modo, conforme já explicado, na prática, o imóvel ficará inteiramente impenhorável.

Qual é o instrumento processual que o cônjuge/companheiro proprietário poderá usar para defender sua parte?
O CPC 1973 determina que, recaindo a penhora em bens imóveis, o cônjuge do executado deverá ser intimado (art. 655, § 2º do CPC 1973).
O CPC 2015 traz regra semelhante, prevendo, no entanto, uma exceção: “Art. 842. Recaindo a penhora sobre bem imóvel ou direito real sobre imóvel, será intimado também o cônjuge do executado, salvo se forem casados em regime de separação absoluta de bens.”
O cônjuge deverá apresentar embargos de terceiro alegando que não tem relação alguma com a dívida e, que, portanto, sua parte no bem não pode ser penhorada para pagar o débito.
O que foi explicado aqui vale também para a união estável.

Mesmo tendo sido intimado, ele poderá opor embargos de TERCEIRO?
Sim. Existe até um enunciado do STJ afirmando isso:
Súmula 134-STJ: Embora intimado da penhora em imóvel do casal, o cônjuge do executado pode opor embargos de terceiro para defesa de sua meação.

Observação:
Em regra, os cônjuges/companheiros são coproprietários do bem de família por causa da meação (lembrando que meação não se confunde com herança; meação existe mesmo com os dois cônjuges ainda vivos).
A definição se haverá meação ou não depende do regime de bens adotado pelo casal (ex: no regime da separação legal o cônjuge não é meeiro). No entanto, é possível que haja a copropriedade porque o casal decidiu comprar o bem juntos e registrá-lo como copropriedade no registro de imóveis.


SITUAÇÃO NA QUAL NÃO SE APLICA A RESSALVA:
Não se aplica a ressalva acima explicada se o casal (ambos os cônjuges ou companheiros) for devedor da pensão alimentícia. Neste caso, o imóvel será penhorado e poderá ser inteiramente utilizado para pagar o débito.

Ex: João e Maria são casados; Lucas (neto do casal) ajuizou ação de alimentos contra eles, sendo a sentença procedente; assim, ambos são devedores de pensão alimentícia em favor do neto; caso não paguem a dívida, a casa em que moram poderá ser penhorada e o dinheiro obtido com a alienação poderá ser inteiramente utilizado para pagamento do débito.


Compare a alteração feita pela Lei n.° 13.144/2015:

Redação anterior
Redação ATUAL

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
III - pelo credor de pensão alimentícia;


Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;


A Lei é inovadora?
NÃO. Isso porque a ressalva que ela introduziu já era consagrada na jurisprudência. Mesmo antes da Lei n.° 13.144/2015, o cônjuge ou companheiro que não tivesse responsabilidade pelo pagamento dos alimentos já podia invocar a intangibilidade de sua parte no bem de família.
A alteração, contudo, é salutar porque deixa a situação mais clara e serve de defesa para o cônjuge ou companheiro que não tiver obrigação com a pensão alimentícia cobrada.

Exemplo que comprova que a lei não inova: irmãos que possuem o mesmo bem de família
Imagine que Cláudio e Teresa são irmãos e, com a morte de seu pai, herdaram a casa onde vivem. Assim, os dois irmãos moram na mesma casa e esta pertence a ambos.
Cláudio teve um filho com uma ex-namorada e paga pensão alimentícia ao menor. Ocorre que ele se torna inadimplente e é executado.
Será possível penhorar a casa onde ele mora, mesmo sendo bem de família? Em tese sim.  No entanto, Teresa é dona de metade desse imóvel.
A situação de Teresa não é protegida pelo novo inciso III do art. 3º da Lei n.° 8.009/90 porque este fala em “união estável ou conjugal”. Teresa e Cláudio são irmãos e não companheiros ou cônjuges.
Apesar disso, mesmo sem respaldo no inciso III, Teresa poderá opor embargos de terceiro pedindo que não incida a penhora sobre a casa. E qual será o fundamento invocado por Teresa? O direito de propriedade, garantido, inclusive, constitucionalmente (art. 5º, XXII).
Desse modo, com esse exemplo, percebe-se que a nova redação dada ao inciso III era desnecessária.

Márcio André Lopes Cavalcante
Professor



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