Biografias
Um dos gêneros literários mais
lidos em todo o mundo são as chamadas biografias, livros nos quais o autor
narra a vida e a história de uma pessoa.
Ocorre que ao mesmo tempo em que
as biografias geram paixão e interesse dos leitores, algumas vezes despertam também
polêmicas.
Isso porque existem duas espécies
de biografias:
a) AUTORIZADA: na qual o
indivíduo que será retratado no livro concordou com a sua divulgação (ou seus
familiares, se já tiver falecido) e até forneceu alguns detalhes para subsidiar
a obra. Geralmente são obras menos interessantes porque representam a “versão oficial”
da vida do biografado, ou seja, apenas os fatos e circunstâncias que ele quer
que sejam mostrados, perdendo um pouco da imparcialidade do relato.
b) NÃO-AUTORIZADA: quando o
biografado (pessoa que está sendo retratada) não concordou expressamente com a
obra ou até se insurgiu formalmente contra a sua edição. São esses os livros
que geram maior interesse porque nele são trazidos fatos polêmicos e as vezes
pouco conhecidos da vida do biografado, circunstâncias que muitas vezes ele não
queria ter exposto.
As biografias não-autorizadas
eram permitidas no Brasil?
NÃO. Segundo a posição
tradicional, as biografias não-autorizadas seriam proibidas pelos arts. 20 e 21
do Código Civil por representarem uma forma de violação à imagem e à privacidade
do biografado. Confira:
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça
ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão
da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se
tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção
o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da
pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará
as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta
norma.
Veja, portanto, que o art. 20
afirma expressamente que a divulgação de escritos ou a publicação da imagem de
uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento.
Quando o art. 20 fala em
“imagem”, ele não está apenas se referindo à imagem fisionômica do indivíduo
(seu retrato). A palavra “imagem” ali empregada tem três acepções:
a) Imagem-retrato: são as características fisionômicas da pessoa,
ou seja, o seu desenho, sua pintura, sua fotografia. A imagem-retrato é captada
pelos olhos.
b) Imagem-atributo: são as características imateriais (morais) por
meio das quais os outros enxergam aquela pessoa. É a personalidade, o caráter,
o comportamento da pessoa segundo a visão de quem a conhece. A imagem-atributo
é captada pelo coração.
c) Imagem-voz: são as características do timbre de voz da pessoa. É a
identificação da pessoa pela voz. O exemplo típico é o dos locutores de TV,
como Gil Gomes e Lombardi. A imagem-voz é captada pelo ouvido.
Em uma interpretação literal do
art. 20, as biografias não-autorizadas seriam proibidas, já que elas constituiriam
na divulgação ou publicação da imagem-atributo do biografado sem que este tenha
dado seu consentimento.
Diante disso, o biografado
poderia, invocando seu direito à imagem e à vida privada, pleitear judicialmente
providências para impedir ou fazer cessar essa publicação (art. 21 do CC). Em
outras palavras, o biografado poderia impedir a produção da biografia ou, se
ela já estivesse pronta, a sua comercialização.
O exemplo mais emblemático de
disputa judicial envolvendo o tema ocorreu no caso do cantor Roberto Carlos,
que processou o jornalista e escritor Paulo Cesar de Araújo, autor de sua
biografia não-autorizada chamada de “Roberto Carlos em detalhes” e que havia
sido lançada em dezembro de 2006 pela Editora Planeta, sendo proibida pela
Justiça em abril de 2007.
ADI 4815
Em 2012, a Associação Nacional
dos Editores de Livros (ANEL) ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade
no STF com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade parcial dos arts. 20
e 21 do Código Civil.
O pedido principal da autora foi
para que o STF desse interpretação conforme a Constituição e declarasse que não
é necessário consentimento da pessoa biografada para a publicação ou veiculação
de obras biográficas, literárias ou audiovisuais.
O STF concordou com o pedido? As
biografias não-autorizadas podem ser publicadas mesmo sem prévia autorização do
biografado (ou de sua família)?
SIM. Por unanimidade, o STF
julgou procedente a ADI e declarou que não é necessária autorização prévia para
a publicação de biografias.
Liberdade de expressão
A CF/88 consagra a liberdade de
expressão em seu art. 5º, IX, prevendo que “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença”.
No art. 220, § 2º, a Carta afirma
que é “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística”.
Desse modo, uma regra
infraconstitucional (Código Civil) não pode abolir o direito de expressão e
criação de obras literárias.
Direitos do biografado
Os Ministros fizeram, no entanto,
a ressalva de que os direitos do biografado não ficarão desprotegidos. A
biografia poderá ser lançada mesmo sem autorização do biografado, mas se se
ficar constatado que houve abuso da liberdade de expressão e violação à honra do
indivíduo retratado, este poderá pedir:
• a reparação dos danos morais e
materiais que sofreu;
• a retificação das informações
veiculadas;
• o direito de resposta;
• e até mesmo, em último caso, a
responsabilização penal do autor da obra.
Em suma:
Para que seja
publicada uma biografia NÃO é necessária autorização prévia do indivíduo
biografado, das demais pessoas retratadas, nem de seus familiares. Essa
autorização prévia seria uma forma de censura, não sendo compatível com a
liberdade de expressão consagrada pela CF/88.
Caso o
biografado ou qualquer outra pessoa retratada na biografia entenda que seus
direitos foram violados pela publicação, ele terá direito à reparação, que
poderá ser feita não apenas por meio de indenização pecuniária, como também por
outras formas, tais como a publicação de ressalva, de nova edição com correção,
de direito de resposta etc.
STF. Plenário.
ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015.