Olá amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada hoje mais uma
importante novidade legislativa. Trata-se da Lei Complementar n.° 150/2015, que dispõe
sobre o contrato de trabalho doméstico, ou seja, as regras que irão reger a
relação de emprego entre patrão e as empregas domésticas.
Nem preciso dizer que consiste na
lei mais importante do ano sobre Direito do Trabalho. Portanto, se você estuda
para concursos trabalhistas ou milita na área, não deixe de estudar a fundo as
alterações.
Infelizmente, sou um profundo
ignorante em Direito do Trabalho e, portanto, não poderei contribuir com o
tema, mas gostaria de destacar para vocês uma mudança trazida por esta Lei e
que reflete nos Direitos Civil e Processual Civil.
A LC 150/2015, dentre outras
disposições, altera a Lei n.°
8.009/90, que trata sobre o bem de família. Antes de verificar o que mudou, vamos
relembrar em que consiste o bem de família.
BEM DE FAMÍLIA
Espécies
de bem de família
No Brasil, atualmente, existem duas
espécies de bem de família:
a)
Bem de família convencional ou voluntário (previsto nos arts. 1711 a 1722
do Código Civil);
b)
Bem de família legal (instituto regulado pela Lei nº 8.009/90).
Bem
de família legal
Bem de família legal é...
- uma proteção conferida pela Lei n.° 8.009/90
- por meio da qual um único imóvel
residencial próprio do casal ou da entidade familiar
- é considerado, em regra, impenhorável
- e não responderá por qualquer tipo de
dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer outra
natureza,
- salvo nas hipóteses previstas na Lei nº
8.009/90.
Em outras palavras, a Lei n.° 8.009/90 considera que o imóvel (só
um) pertencente à família ou à entidade familiar não pode ser, em regra,
penhorado para pagamento de dívidas, salvo nas hipóteses excepcionais previstas
no art. 3º da Lei.
Apesar do nome “bem de FAMÍLIA”, o
objetivo real do instituto é assegurar o direito constitucional à moradia,
tanto que esse direito existe mesmo que a pessoa more só. A nomenclatura mais
adequada do instituto deveria ser “bem de moradia” (mas deixa isso para lá...).
Hipóteses
excepcionais em que o bem de família pode ser penhorado
O art. 3º da Lei n.° 8.009/90 traz uma lista de incisos com
as hipóteses em que o bem de família legal pode ser penhorado.
Vejamos o art. 3º, ANTES da LC 150/2015:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível
em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou
de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de
trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições
previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente
do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos
créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor de pensão
alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial
ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o
imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto
de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento,
indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de
fiança concedida em contrato de locação.
Qual
foi a mudança ocorrida?
A LC 150/2015 revogou o inciso I do art. 3º.
Diante disso, temos a seguinte questão:
é possível penhorar a casa do “patrão” por dívidas trabalhistas que este tenha
com sua empregada doméstica ou por débitos relacionados com a contribuição
previdenciária desta funcionária?
Antes da LC 150/2015: SIM (ERA possível).
O inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90 previa que ERA possível a
penhora do bem de família para pagamento dessas dívidas. Veja novamente a redação
do inciso:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível
em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou
de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de
trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições
previdenciárias;
ATUALMENTE: NÃO.
A LC 150/2015 revogou o inciso I do art. 3º.
Desse modo, atualmente, o bem de família
não pode mais ser penhorado para pagamento de dívidas de trabalhadores da
própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias.
Assim, por exemplo, se um empregador
doméstico está sendo executado por dívidas trabalhistas relacionados com sua
ex-empregada doméstica ou por dívidas relativas a contribuições previdenciárias
também decorrentes deste vínculo, não se poderá penhorar o bem de família
pertencente ao “patrão”.
Vale ressaltar, no entanto, que, se o
devedor possuir mais de um bem imóvel, apenas um deles será considerado bem de
família e o outro poderá ser penhorado. De igual forma, poderão ser penhorados
bens móveis do “patrão” executado, como carros, motocicletas, joias, além, é
claro, da penhora on line de dinheiro
que esteja depositado em instituições financeiras.
Direito
intertemporal
Uma grande polêmica que surgirá sobre o
tema diz respeito à aplicabilidade da alteração promovida. A pergunta que surge
é a seguinte: a revogação do inciso I do art. 3º aplica-se às em curso mesmo
que as dívidas tenham surgido antes da LC 150/2015?
Entendo que SIM, salvo se já houve a
penhora do bem de família.
Se o bem de família já foi penhorado
(ainda que não tenha sido levado à arrematação), a revogação da LC 150/2015 não
tem o condão de revogar/cassar a penhora lavrada.
Por outro lado, se a execução está em
curso, mas a penhora não foi efetivada até o dia 02/06/2015 (data em que entrou
em vigor a lei), não mais poderá ser realizada mesmo que se refira a uma dívida
anterior à LC 150/2015.
O art. 46 da LC 150/2015, que revogou o
inciso I do art. 3º da Lei n.°
8.009/90, é uma norma de caráter processual. As normas processuais têm aplicação
imediata aos processos em curso (art. 1.211 do CPC 1973) (art. 1.046 do CPC
2015). Aplicação imediata, contudo, não se confunde com aplicação retroativa.
Em outras palavras, a lei processual aplica-se imediatamente aos processos em
curso, mas não retroage para alcançar atos processuais validamente praticados
antes de sua vigência.
Para fixar melhor tal distinção, recorre-se
a “teoria dos atos processuais isolados”. Segundo esta teoria, cada ato
processual deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de se determinar
qual a lei que o rege. Assim, a lei que disciplina o ato processual é aquela em
vigor no momento em que ele é praticado, ou seja, a entrada em vigor de nova
lei processual não altera os atos processuais que já foram praticados. Se a
penhora já foi realizada e, no momento de sua efetivação, a lei permitia a
constrição do bem de família, a mudança processual não pode ter caráter
retroativo para desfazer este ato processual que foi validamente consumado
segundo a lei vigente ao tempo de sua prática (tempus regit actum).
A revogação do inciso I do art. 3º traz
uma restrição imposta para o momento da penhora. Assim, a realização de
penhoras a partir de agora, ainda que para os processos em curso, deverão
respeitar a impenhorabilidade do bem de família para dívidas trabalhistas e
previdenciárias de empregados domésticos.
Atenção.
Apesar de acreditar que a posição acima é a mais acertada, reconheço que ela
não deverá ser adotada pela jurisprudência. Isso porque o tema não é novo e já
foi enfrentado quando a Lei n.° 8.009/90
foi editada, tendo o STJ afirmado que esta lei teve incidência imediata, cancelando
as penhoras que já tinham sido realizadas. Nesse sentido, foi aprovado,
inclusive, um enunciado com a seguinte redação:
Súmula
205-STJ: A Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.
Assim, é firme o entendimento consagrado no STJ no sentido de que a Lei n.° 8.009/90 ao entrar em vigor e considerar impenhoráveis os bens de família, teve eficácia imediata, atingindo os processos judiciais em andamento, motivo pelo qual o STJ entendeu, na época, que deveriam ser canceladas as penhoras efetuadas antes de sua vigência (REsp 63.866/SP, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 17/05/2001).
Assim, é firme o entendimento consagrado no STJ no sentido de que a Lei n.° 8.009/90 ao entrar em vigor e considerar impenhoráveis os bens de família, teve eficácia imediata, atingindo os processos judiciais em andamento, motivo pelo qual o STJ entendeu, na época, que deveriam ser canceladas as penhoras efetuadas antes de sua vigência (REsp 63.866/SP, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 17/05/2001).
Revogação
por lei complementar
Alguns de vocês podem estar se
perguntando: mas uma lei complementar (LC 150/2015) revogou uma lei ordinária
(Lei 8.009/90)? Isso é possível?
Na verdade, algumas vezes a lei
complementar possui alguns dispositivos (determinados artigos, parágrafos etc.)
que possuem apenas a forma, a “roupagem” de lei complementar, mas que na
verdade, são, em sua essência, em sua matéria, leis ordinárias.
O art. 46 da LC 150/2015, que revogou o
inciso I do art. 3º da Lei n.°
8.009/90, possui a forma de lei complementar, mas na verdade tem natureza (matéria)
de lei ordinária porque não trata de nenhum dos assuntos que a CF/88 reservou
para leis complementares.
Tanto isso é verdade que o legislador incluiu
o seguinte artigo explicativo na LC 150/2015:
Art. 45. As matérias tratadas nesta Lei
Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei complementar
poderão ser objeto de alteração por lei ordinária.
Logo, não houve qualquer problema em a
LC 150/2015 revogar o inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90.
Fiquem atentos para esta importante
novidade legislativa.
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor
Obs: registro o agradecimento ao leitor
Marcio Scarpim de Souza que enviou mensagem alertando sobre a mudança.