Dizer o Direito

terça-feira, 2 de junho de 2015

LC 150/2015 proíbe penhora de bem de família para pagamento de dívidas trabalhistas ou previdenciárias do empregador com empregadas domésticas


Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje mais uma importante novidade legislativa. Trata-se da Lei Complementar n.° 150/2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, ou seja, as regras que irão reger a relação de emprego entre patrão e as empregas domésticas.

Nem preciso dizer que consiste na lei mais importante do ano sobre Direito do Trabalho. Portanto, se você estuda para concursos trabalhistas ou milita na área, não deixe de estudar a fundo as alterações.

Infelizmente, sou um profundo ignorante em Direito do Trabalho e, portanto, não poderei contribuir com o tema, mas gostaria de destacar para vocês uma mudança trazida por esta Lei e que reflete nos Direitos Civil e Processual Civil.

A LC 150/2015, dentre outras disposições, altera a Lei n.° 8.009/90, que trata sobre o bem de família. Antes de verificar o que mudou, vamos relembrar em que consiste o bem de família.

BEM DE FAMÍLIA

Espécies de bem de família
No Brasil, atualmente, existem duas espécies de bem de família:
a) Bem de família convencional ou voluntário (previsto nos arts. 1711 a 1722 do Código Civil);
b) Bem de família legal (instituto regulado pela Lei nº 8.009/90).

Bem de família legal
Bem de família legal é...
- uma proteção conferida pela Lei n.° 8.009/90
- por meio da qual um único imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar
- é considerado, em regra, impenhorável
- e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer outra natureza,
- salvo nas hipóteses previstas na Lei nº 8.009/90.

Em outras palavras, a Lei n.° 8.009/90 considera que o imóvel (só um) pertencente à família ou à entidade familiar não pode ser, em regra, penhorado para pagamento de dívidas, salvo nas hipóteses excepcionais previstas no art. 3º da Lei.

Apesar do nome “bem de FAMÍLIA”, o objetivo real do instituto é assegurar o direito constitucional à moradia, tanto que esse direito existe mesmo que a pessoa more só. A nomenclatura mais adequada do instituto deveria ser “bem de moradia” (mas deixa isso para lá...).

Hipóteses excepcionais em que o bem de família pode ser penhorado
O art. 3º da Lei n.° 8.009/90 traz uma lista de incisos com as hipóteses em que o bem de família legal pode ser penhorado.

Vejamos o art. 3º, ANTES da LC 150/2015:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III - pelo credor de pensão alimentícia;

IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Qual foi a mudança ocorrida?
A LC 150/2015 revogou o inciso I do art. 3º.

Diante disso, temos a seguinte questão: é possível penhorar a casa do “patrão” por dívidas trabalhistas que este tenha com sua empregada doméstica ou por débitos relacionados com a contribuição previdenciária desta funcionária?

Antes da LC 150/2015: SIM (ERA possível).
O inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90 previa que ERA possível a penhora do bem de família para pagamento dessas dívidas. Veja novamente a redação do inciso:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;

ATUALMENTE: NÃO.
A LC 150/2015 revogou o inciso I do art. 3º.
Desse modo, atualmente, o bem de família não pode mais ser penhorado para pagamento de dívidas de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias.
Assim, por exemplo, se um empregador doméstico está sendo executado por dívidas trabalhistas relacionados com sua ex-empregada doméstica ou por dívidas relativas a contribuições previdenciárias também decorrentes deste vínculo, não se poderá penhorar o bem de família pertencente ao “patrão”.

Vale ressaltar, no entanto, que, se o devedor possuir mais de um bem imóvel, apenas um deles será considerado bem de família e o outro poderá ser penhorado. De igual forma, poderão ser penhorados bens móveis do “patrão” executado, como carros, motocicletas, joias, além, é claro, da penhora on line de dinheiro que esteja depositado em instituições financeiras.

Direito intertemporal
Uma grande polêmica que surgirá sobre o tema diz respeito à aplicabilidade da alteração promovida. A pergunta que surge é a seguinte: a revogação do inciso I do art. 3º aplica-se às em curso mesmo que as dívidas tenham surgido antes da LC 150/2015?
Entendo que SIM, salvo se já houve a penhora do bem de família.
Se o bem de família já foi penhorado (ainda que não tenha sido levado à arrematação), a revogação da LC 150/2015 não tem o condão de revogar/cassar a penhora lavrada.
Por outro lado, se a execução está em curso, mas a penhora não foi efetivada até o dia 02/06/2015 (data em que entrou em vigor a lei), não mais poderá ser realizada mesmo que se refira a uma dívida anterior à LC 150/2015.
O art. 46 da LC 150/2015, que revogou o inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90, é uma norma de caráter processual. As normas processuais têm aplicação imediata aos processos em curso (art. 1.211 do CPC 1973) (art. 1.046 do CPC 2015). Aplicação imediata, contudo, não se confunde com aplicação retroativa. Em outras palavras, a lei processual aplica-se imediatamente aos processos em curso, mas não retroage para alcançar atos processuais validamente praticados antes de sua vigência.
Para fixar melhor tal distinção, recorre-se a “teoria dos atos processuais isolados”. Segundo esta teoria, cada ato processual deve ser considerado separadamente dos demais para o fim de se determinar qual a lei que o rege. Assim, a lei que disciplina o ato processual é aquela em vigor no momento em que ele é praticado, ou seja, a entrada em vigor de nova lei processual não altera os atos processuais que já foram praticados. Se a penhora já foi realizada e, no momento de sua efetivação, a lei permitia a constrição do bem de família, a mudança processual não pode ter caráter retroativo para desfazer este ato processual que foi validamente consumado segundo a lei vigente ao tempo de sua prática (tempus regit actum).
A revogação do inciso I do art. 3º traz uma restrição imposta para o momento da penhora. Assim, a realização de penhoras a partir de agora, ainda que para os processos em curso, deverão respeitar a impenhorabilidade do bem de família para dívidas trabalhistas e previdenciárias de empregados domésticos.

Atenção. Apesar de acreditar que a posição acima é a mais acertada, reconheço que ela não deverá ser adotada pela jurisprudência. Isso porque o tema não é novo e já foi enfrentado quando a Lei n.° 8.009/90 foi editada, tendo o STJ afirmado que esta lei teve incidência imediata, cancelando as penhoras que já tinham sido realizadas. Nesse sentido, foi aprovado, inclusive, um enunciado com a seguinte redação:
Súmula 205-STJ: A Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência.

Assim, é firme o entendimento consagrado no STJ no sentido de que a Lei n.° 8.009/90 ao entrar em vigor e considerar impenhoráveis os bens de família, teve eficácia imediata, atingindo os processos judiciais em andamento, motivo pelo qual o STJ entendeu, na época, que deveriam ser canceladas as penhoras efetuadas antes de sua vigência (REsp 63.866/SP, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 17/05/2001).

Revogação por lei complementar
Alguns de vocês podem estar se perguntando: mas uma lei complementar (LC 150/2015) revogou uma lei ordinária (Lei 8.009/90)? Isso é possível?
Na verdade, algumas vezes a lei complementar possui alguns dispositivos (determinados artigos, parágrafos etc.) que possuem apenas a forma, a “roupagem” de lei complementar, mas que na verdade, são, em sua essência, em sua matéria, leis ordinárias.
O art. 46 da LC 150/2015, que revogou o inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90, possui a forma de lei complementar, mas na verdade tem natureza (matéria) de lei ordinária porque não trata de nenhum dos assuntos que a CF/88 reservou para leis complementares.
Tanto isso é verdade que o legislador incluiu o seguinte artigo explicativo na LC 150/2015:
Art. 45. As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária.

Logo, não houve qualquer problema em a LC 150/2015 revogar o inciso I do art. 3º da Lei n.° 8.009/90.

Fiquem atentos para esta importante novidade legislativa.

Márcio André Lopes Cavalcante
Professor

Obs: registro o agradecimento ao leitor Marcio Scarpim de Souza que enviou mensagem alertando sobre a mudança.


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