Dizer o Direito

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Pode haver dano moral sem dor?



Imagine a seguinte situação adaptada:
João é portador de doença mental (demência total e irreversível) e já foi, inclusive, declarado judicialmente interditado, tendo-lhe sido nomeada a sua filha como curadora.
João mantém uma conta bancária onde recebe um benefício assistencial.
Determinado dia, a sua filha notou que houve saques indevidos (fraudulentos) que foram feitos de sua conta bancária por um terceiro.
Mesmo após ser alertado acerca do saque indevido, o banco nada fez, não restituindo a quantia sacada.
Diante disso, João, representado por sua filha e curadora, ajuizou ação de ressarcimento por danos materiais e morais contra o banco.
O banco contestou o pedido afirmando que o autor não sofreu qualquer dano moral porque, sendo ele portador de demência total, nem mesmo teve consciência de que foram feitos saques de sua conta. Logo, não se pode dizer que tenha sofrido uma dor, um abalo em seu íntimo.

A questão chegou até o STJ. O absolutamente incapaz, mesmo sem entender seus atos e os de terceiros, pode sofrer dano moral?
SIM. O absolutamente incapaz, ainda quando impassível de detrimento anímico, pode sofrer dano moral.
O dano moral caracteriza-se por uma ofensa, e não por uma dor ou um padecimento.
Eventuais mudanças no estado de alma do lesado decorrentes do dano moral, portanto, não constituem o próprio dano, mas eventuais efeitos ou resultados do dano.
Os bens jurídicos cuja afronta caracteriza o dano moral são os denominados pela doutrina como direitos da personalidade, que são aqueles reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade.
A CF/88 deu ao homem lugar de destaque, realçou seus direitos e fez deles o fio condutor de todos os ramos jurídicos.
A dignidade humana pode ser considerada, assim, um direito constitucional subjetivo – essência de todos os direitos personalíssimos –, e é o ataque a esse direito o que se convencionou chamar dano moral.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.245.550-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/3/2015 (Info 559).


Aprofundando mais a discussão:
Para que haja dano moral, é necessário que o seu titular tenha sentido uma dor em seu íntimo?
No voto, o excelente Min. Luis Felipe Salomão faz um interessante estudo sobre o conceito de dano moral (REsp 1.245.550-MG).

Segundo constata o Ministro, a doutrina se divide em dois grupos:

1º) DANO MORAL EXIGE DOR DA VÍTIMA

Há aqueles que dizem que o dano moral é a alteração negativa do ânimo do indivíduo.
Assim, para que haja dano moral, é necessário que o titular tenha sido vítima de sofrimento, tristeza, vergonha etc, ou seja, alterações negativas no seu estado anímico, psicológico ou espiritual.

De acordo com os que pensam o dano moral dessa forma, não há dano moral sem dor, padecimento ou sofrimento, físico ou moral.
É o caso, p. ex., de Carlos Alberto Bittar, para quem os danos morais “se traduzem em turbações de ânimo, em reações desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras, ou outras desse nível, produzidas na esfera do lesado” (BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004).


2º) DANO MORAL NÃO EXIGE DOR DA VÍTIMA

Por outro lado, há aqueles que reconhecem que existe dano moral pelo simples fato de ter havido uma violação de um bem ou interesse jurídico, sem exigir que a vítima tenha sofrido dor ou qualquer outra modificação no seu estado da alma. O dano moral existe pelo simples ataque em si a determinado direito, e não com sua consequência, ou seja, com o resultado por ele provocado.

É a posição de Sergio Cavalieri, para quem: “o dano moral não está necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima. Pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver dor, vexame e sofrimento sem violação da dignidade. Dor, vexame, sofrimento e humilhação podem ser consequências, e não causas. Assim como a febre é o efeito de uma agressão orgânica, a reação psíquica da vítima só pode ser considerada dano moral quando tiver por causa uma agressão à sua dignidade.
Com essa ideia, abre-se espaço para o reconhecimento do dano moral em relação a várias situações nas quais a vítima não é passível de detrimento anímico, como se dá com doentes mentais, as pessoas em estado vegetativo ou comatoso, crianças de tenra idade e outras situações tormentosas. Por mais pobre e humilde que seja uma pessoa, ainda que completamente destituída de formação cultural e bens materiais, por mais deplorável que seja seu estado biopsicológico, ainda que destituída de consciência, enquanto ser humano será detentora de um conjunto de bens integrantes de sua personalidade, mais precioso que o patrimônio. É a dignidade humana, que não é privilégio apenas dos ricos, cultos ou poderosos, que deve ser por todos respeitada. Os bens que integram a personalidade constituem valores distintos dos bens patrimoniais, cuja agressão resulta no que se convencionou chamar dano moral.” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 79-80)

Qual a posição adotada pelo STJ?
O STJ aderiu à segunda corrente e concluiu que é possível concluir que o dano moral se caracterize pela simples ofensa a determinados direitos ou interesses. O evento danoso não se revela na dor, no padecimento, que são, na verdade, consequências do dano, seu resultado.
“As mudanças no estado de alma do lesado, decorrentes do dano moral, não constituem, pois, o próprio dano, mas efeitos ou resultados do dano” (ANDRADE, André Gustavo C. de. A evolução do conceito de dano moral. In Revista da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, 2008).

Resumindo:
• Dano moral: é a ofensa a determinados direitos ou interesses. Basta isso para caracterizá-lo.
• Dor, sofrimento, humilhação: são as consequências do dano moral (não precisam necessariamente ocorrer para que haja a reparação).

Existem outros precedentes do STJ no mesmo sentido da 2ª corrente?
SIM. Há na jurisprudência do STJ precedentes que visualizaram a configuração do dano moral, por violação a direito da personalidade, em relação a sujeitos cujo grau de discernimento é baixo ou inexistente e, naquelas decisões, o estado da pessoa não foi motivo suficiente ao afastamento do dano. É o caso, por exemplo, de crianças de tenra idade ou mesmo recém-nascidos:
(...) 5. Caracterização de dano extrapatrimonial para criança que tem frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde.
6. Arbitramento de indenização pelo dano extrapatrimonial sofrido pela criança prejudicada. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1291247⁄RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 01⁄10⁄2014.

(...) As crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integridade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação, nos termos dos arts. 5º, X, in fine, da CF e 12, caput, do CC⁄02.
- Mesmo quando o prejuízo impingido ao menor decorre de uma relação de consumo, o CDC, em seu art. 6º, VI, assegura a efetiva reparação do dano, sem fazer qualquer distinção quanto à condição do consumidor, notadamente sua idade. Ao contrário, o art. 7º da Lei nº 8.078⁄90 fixa o chamado diálogo de fontes, segundo o qual sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1037759⁄RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 05⁄03⁄2010.



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