Dizer o Direito

sábado, 23 de maio de 2015

Bancos têm o dever de fornecer contrato bancário em Braille para deficientes visuais



Caso concreto
Determinada associação de amparo aos deficientes visuais ajuizou ação civil pública contra o Banco do Brasil pedindo que a instituição financeira fosse condenada a:
a) confeccionar em Braille os contratos de adesão que são assinados para contratação de seus serviços a fim de que os clientes com deficiência visual pudessem ter conhecimento, por meio próprio, das cláusulas;
b) enviar os extratos mensais impressos em linguagem Braille para os clientes com deficiência visual;
c) desenvolver cartilha para seus empregados com normas de conduta para atendimentos ao deficiente visual;
d) pagar indenização pelos danos morais coletivos causados, valor a ser recolhido em favor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

O Banco contestou a ação sustentando, dentre outros argumentos, que o pedido não tem amparo legal e que o BACEN disciplina os requisitos e trâmites exigíveis durante a contratação bancária e não impõe que os contratos sejam fornecidos em Braille. A Resolução do BACEN exige apenas que as contratações feitas com deficientes visuais sejam precedidas de leitura, em voz alta, por terceiro, das cláusulas contratuais, na presença de testemunhas.

O STJ concordou com os pedidos feitos pela associação?
SIM. As instituições financeiras devem utilizar o sistema Braille na confecção dos contratos bancários de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo estabelecida com indivíduo portador de deficiência visual.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.315.822-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/3/2015 (Info 559).

Fundamentos legais:
Apesar de não haver uma lei que diga de forma expressa que as instituições financeiras devem oferecer seus documentos em Braille para os clientes cegos, é possível extrair esse dever de três diplomas normativos presentes em nosso ordenamento jurídico:

1) Lei 4.169/62
O art. 1º da Lei n.° 4.169/1962 oficializa as convenções Braille para uso na escrita e leitura dos cegos.

2) Lei 10.048/2000
A Lei n.° 10.048/2000 determina que as pessoas portadoras de deficiência devem ter prioridade de atendimento, inclusive em instituições financeiras. A referida Lei, ao estabelecer normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, explicitou a necessidade de que sejam suprimidas todas as barreiras e obstáculos existentes para pessoas com deficiência, em especial, nos meios de comunicação.

3) Decreto 6.949/2009
O Decreto 6.949/2009 promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, cujo texto possui valor equivalente ao de uma emenda constitucional, e, por veicular direitos e garantias fundamentais do indivíduo, tem aplicação concreta e imediata (art. 5º, §§ 1º e 3º, da CF/88).
A convenção impôs aos Estados signatários a obrigação de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, conferindo-lhes tratamento materialmente igualitário (diferenciado na proporção de sua desigualdade), acessibilidade física, de comunicação e informação, além de inclusão social, autonomia e independência. 
Especificamente sobre a barreira da comunicação, a Convenção faz menção em diversos dispositivos ao método Braille, determinando que ele seja incentivado como forma de propiciar aos deficientes visuais o efetivo acesso às informações.
Nesses termos, valendo-se das definições trazidas pelo Tratado, pode-se afirmar que a não utilização do método Braille durante as negociações e assinatura do contrato configuram, a um só tempo, intolerável discriminação por deficiência e inobservância da almejada “adaptação razoável”.

4) CDC
A utilização do método Braille nos contratos bancários com pessoas portadoras de deficiência visual encontra fundamento, ainda, na legislação consumerista, que preconiza ser direito básico do consumidor o fornecimento de informação suficientemente adequada e clara do produto ou serviço oferecido, encargo a ser observado não apenas por ocasião da celebração do contrato, mas também durante todas as fases, inclusive pré-contratual. No caso do consumidor deficiente visual, a consecução deste direito somente é alcançada por meio da utilização do método Braille, que viabiliza a integral compreensão das cláusulas contratuais submetidas à sua apreciação, especialmente aquelas que impliquem limitações de direito, assim como dos extratos mensais, dando conta dos serviços prestados, taxas cobradas etc.

Alegação de o BACEN não fazer essa exigência
Ressalte-se que, diante da magnitude do direito em exame, que tem fundamento na convenção internacional, na CF/88 e na lei, mostra-se sem qualquer relevância o fato de a Resolução 2.878/2001 do BACEN não exigir o método Braille, contentando-se com a mera leitura em voz alta das cláusulas contratuais.  Este singelo procedimento é insuficiente à proteção dos interesses dos deficientes visuais, além de violar sua intimidade, já que outras pessoas (terceiros) terão acesso às suas informações bancárias, que serão lidas perante testemunhas.
É de se concluir, assim, que a obrigatoriedade de confeccionar em Braille os contratos bancários de adesão para os clientes portadores de deficiência visual, além de encontrar esteio no ordenamento jurídico nacional, afigura-se absolutamente razoável e consentâneo com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Danos morais coletivos
A jurisprudência mais recente do STJ tem admitido a existência de dano extrapatrimonial coletivo e o correspondente dever de repará-lo.
O artigo 6º, VI, do CDC é explícito ao possibilitar o cabimento de indenização por danos morais aos consumidores, tanto de ordem individual quanto coletivamente. De igual modo, o artigo 1º da LACP, admite a pretensão reparatória por danos extrapatrimoniais causados a qualquer interesse difuso ou coletivo.
Assim, o STJ entende que é possível, em tese, a configuração de dano moral coletivo sempre que a lesão ou a ameaça de lesão levada a efeito pela parte demandada atingir valores e interesses fundamentais do grupo, afigurando-se, pois, descabido negar a essa coletividade o ressarcimento de seu patrimônio imaterial aviltado.

A propósito, cita-se os seguintes precedentes:
(...) O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base.
2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos. (...)
STJ. 2ª Turma. REsp 1057274/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 01/12/2009.

(...) 8. O dano moral coletivo é a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de direito transindividual de ordem coletiva, valores de uma sociedade atingidos do ponto de vista jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas qualquer abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na verdade, apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial de uma pessoa.
9. Há vários julgados desta Corte Superior de Justiça no sentido do cabimento da condenação por danos morais coletivos em sede de ação civil pública. (...)
10. Esta Corte já se manifestou no sentido de que "não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso, que dê ensanchas à responsabilidade civil. Ou seja, nem todo ato ilícito se revela como afronta aos valores de uma comunidade. Nessa medida, é preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. (REsp 1.221.756⁄RJ, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 10.02.2012).
(...)
12. Afastar, da espécie, o dano moral difuso, é fazer tabula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do consumidor. (...)
STJ. 2ª Turma. REsp 1397870/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 02/12/2014

No caso concreto, o STJ entendeu que a relutância da instituição financeira em utilizar o método Braille nos contratos bancários de adesão firmados com pessoas portadoras de deficiência visual confere-lhe tratamento manifestamente discriminatório e tem o condão de afrontar a dignidade deste grupo de pessoas gerando danos morais coletivos.

Resumindo:
As instituições financeiras devem confeccionar em Braille os contratos de adesão que são assinados para contratação de seus serviços a fim de que os clientes com deficiência visual possam ter conhecimento, por meio próprio, das cláusulas contratuais ali contidas.
Os bancos devem também enviar os extratos mensais impressos em linguagem Braille para os clientes com deficiência visual.
Além disso, tais instituições devem desenvolver cartilha para seus empregados com normas de conduta para atendimentos ao deficiente visual.
A relutância da instituição financeira em utilizar o método Braille nos contratos bancários de adesão firmados com pessoas portadoras de deficiência visual representa tratamento manifestamente discriminatório e tem o condão de afrontar a dignidade deste grupo de pessoas gerando danos morais coletivos.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.315.822-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 24/3/2015 (Info 559).

Obs: apesar de a decisão, no caso concreto, ter envolvido apenas o Banco do Brasil, o raciocínio e os argumentos empregados podem ser aplicados para todas as demais instituições financeiras.



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