Imagine a seguinte situação adaptada:
João adquiriu, na concessionária “VVV”,
um veículo 0km fabricado pela Volskwagen do Brasil S/A.
Como
não tinha condições de pagar o carro à vista, o consumidor, no ato da compra,
dentro da própria concessionária, fez um financiamento (arrendamento mercantil,
também chamado de leasing) com o Banco
Volskwagen S/A, instituição financeira pertencente ao mesmo grupo econômico da
montadora do veículo.
Ocorre que, desde que o automóvel
foi adquirido, ele apresentou inúmeros problemas relacionados com freio e
suspensão, tendo que retornar dezenas de vezes para a assistência técnica.
Insatisfeito, João propôs ação pedindo
a rescisão do contrato de compra e venda e a rescisão do contrato de arrendamento
mercantil alegando que o veículo adquirido possuía vício redibitório. Requereu,
ainda, a devolução da quantia paga e indenização por danos materiais e morais.
Ressalte-se que a ação foi
proposta contra três réus: a concessionária, a fabricante e o banco.
O
banco suscitou sua ilegitimidade passiva para a causa afirmando que não poderia
responder por defeito de produto que não forneceu e que o fato de ter concedido
financiamento bancário, não o tornaria responsável pelo carro adquirido. Argumentou,
ainda, que o seu contrato com o consumidor seria independente do contrato de
compra e venda e, por isso, o arrendamento mercantil deveria ser mantido válido.
A tese da instituição financeira foi aceita pelo STJ?
NÃO. O STJ decidiu que instituição
financeira vinculada à concessionária do veículo (“banco da montadora”) possui responsabilidade
solidária por vício do produto (veículo novo defeituoso) uma vez que ela foi parte
integrante da cadeia de consumo.
STJ. 3ª Turma. Rel.
para Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 11/11/2014 (Info 554).
Responsabilidade solidária de todos
que participaram da introdução do produto no mercado
Todos aqueles que participam da
introdução do produto ou serviço no mercado devem responder solidariamente por
eventual defeito ou vício, isto é, imputa-se a toda a cadeia de fornecimento a
responsabilidade pela garantia de qualidade e adequação (Min. Nancy Andrighi).
Fica a critério do consumidor escolher
contra quais fornecedores solidários ele irá propor a ação, conforme sua
comodidade e/ou conveniência, assegurado aos que forem escolhidos como réus
demandarem, posteriormente, contra os demais corresponsáveis em ação
regressiva.
Mas o banco não teve culpa pelo
carro apresentar problemas...
Não interessa. A responsabilidade
solidária de todos os fornecedores é objetiva em relação ao consumidor, de
forma que, na ação proposta pelo consumidor não se irá discutir qual dos
fornecedores foi o culpado pelo vício.
No caso concreto, o contrato de
arrendamento mercantil (leasing) não é independente do contrato de compra e venda
do veículo? Esse argumento do banco não estaria correto?
NÃO. Segundo explicou a Min.
Nancy Andrighi, atualmente, a principal via para adquirir um carro é por meio
de financiamento bancário, que pode ser feito por arrendamento mercantil (leasing) ou por alienação fiduciária.
Com o objetivo de incrementar a
venda de automóveis e maximizar seus lucros, muitas montadoras criaram bancos (conhecidos
no mercado como “bancos de montadoras”) que oferecem, via de regra, juros mais
baixos que os “bancos de varejo”.
Os “bancos de montadoras”
funcionam como “braço financeiro” da montadora a que se vinculam, atuando com o
objetivo de aumentar as vendas de automóveis de determinada marca por
facilitarem o crédito aos consumidores interessados.
O cliente que procura a
concessionária já tem o pacote completo: além de escolher e comprar o veículo,
já pode, no mesmo local, contratar um financiamento para pagar o produto.
É possível, portanto, dizer que a
razão de existir dos “bancos de montadoras” é a de fomentar as vendas das fabricantes
e concessionárias de veículos.
Assim, o contrato de arrendamento
mercantil assinado entre o consumidor e um “banco de montadora” só existe porque
houve, logo antes, um contrato de compra e venda de veículo da mesma marca a
que se vincula esse banco.
Se não tivesse havido o contrato
de compra e venda do automóvel, não seria possível ao consumidor obter crédito
do “banco da montadora” para realizar outra operação, como, por exemplo,
adquirir um veículo de outra marca.
Perceba, dessa forma, que o arrendamento
mercantil, nessa situação, passa a integrar a própria relação de compra e venda
como um serviço adicional oferecido pela fabricante de automóveis para
consecução do objetivo maior, que é a venda do veículo.
Nesses casos, o contrato de
arrendamento mercantil não foi feito de forma independente. Ao contrário, está
atrelado ao contrato de compra e venda, de forma que é possível vislumbrar a
existência de uma “operação casada”.
O arrendamento mercantil só
existe para facilitar a compra do veículo daquela montadora, e os contratos de
compra e venda e de arrendamento mercantil são, portanto, interdependentes.
O contrato firmado entre o
consumidor e o “banco de montadora”, apesar de não fazer parte direta da cadeia
produtiva, deve ser entendido como uma relação periférica, que sofre
influências e influencia na cadeia, no que se refere ao serviço prestado.
Boa-fé objetiva
Além dos argumentos acima
expostos, o STJ considerou que viola a boa-fé objetiva impor ao consumidor que
continue quitando as parcelas de um contrato de arrendamento mercantil firmado
com um “banco de montadora”, se o automóvel é imprestável para uso, ou que
arque com os juros dessa operação quando o contrato de compra e venda já foi
rescindido, em virtude de vício redibitório.
Teoria base do negócio jurídico
Segundo a teoria da base objetiva
do negócio, as obrigações recíprocas dos contratantes são fixadas sob
determinada realidade fática, que assegura a equivalência e a finalidade do
contrato. Se essas circunstâncias forem substancialmente modificadas, é
permitida a revisão, rescisão ou resilição do contrato. A teoria da base
objetiva do negócio diferencia-se da teoria da imprevisão porque na teoria da
base do negócio não há o advento de vantagem exagerada em prol de uma das partes
do contrato.
Impor ao consumidor a manutenção
de um contrato de arrendamento mercantil, firmado com o “banco de montadora”
quando o contrato de compra e venda de automóvel não mais subsiste, atenta
contra a teoria da base objetiva do negócio.
Houve, na hipótese, o rompimento
da base do negócio jurídico, e a solução mais consentânea com a boa-fé objetiva
reside em reconhecer a insubsistência do contrato de arrendamento mercantil, na
medida em que a razão de existir do contrato de financiamento consiste
unicamente em viabilizar a aquisição do carro pelo consumidor.
Assim, a desconstituição do
contrato de compra e venda alcança também a do próprio arrendamento mercantil
feito com “banco de montadora”.
Em caso de vício redibitório no
veículo comprado, o banco no qual foi realizado o financiamento terá responsabilidade
civil e o contrato de arrendamento mercantil poderá ser rescindido?
• Se foi feito com um
“banco de varejo”: NÃO.
• Se foi feito com um “banco
de montadora”: SIM.