Imagine a seguinte situação adaptada:
João foi denunciado pela prática
de descaminho (art. 334 do CP).
Antes do recebimento da denúncia,
João efetuou o pagamento integral dos débitos oriundos do tributo devido
(principal e multa).
Pagamento integral do débito e
extinção da punibilidade
O pagamento integral do débito fiscal realizado
pelo réu é causa de extinção de sua punibilidade, conforme previu a Lei n.° 10.684/2003:
Art. 9º É suspensa
a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e
2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, durante o
período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes
estiver incluída no regime de parcelamento.
(...)
§ 2º Extingue-se a
punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica
relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos
oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Lei n.°
12.382/2011
Em 2011, foi editada a Lei n.° 12.382, que alterou o art. 83 da Lei n.° 9.430/96 e passou a dispor sobre os
efeitos do parcelamento e do pagamento dos créditos tributários no processo
penal. Veja o que diz a Lei:
Art. 83. A representação fiscal para
fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º
e 2º da Lei n.° 8.137,
de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos
nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei n.° 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público
depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a
exigência fiscal do crédito tributário correspondente. (Redação dada pela Lei nº 12.350/2010)
(...)
§ 2º É suspensa a pretensão punitiva do
Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a
pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes
estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido
formalizado antes do recebimento da denúncia criminal. (Incluído pela Lei 12.382/2011)
§ 3º A prescrição criminal não corre
durante o período de suspensão da pretensão punitiva. (Incluído
pela Lei 12.382/2011)
§ 4º Extingue-se a punibilidade dos
crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica
relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de
tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de
parcelamento. (Incluído
pela Lei 12.382/2011)
Descaminho não está previsto nas
Leis n.° 9.430/96
e 10.684/2003:
O art. 9º da Lei n.° 10.684/2003 e o art. 83
da Lei n.°
10.684/2003 mencionam os crimes aos quais são aplicadas suas regras:
• arts. 1º e 2º da Lei nº
8.137/90;
• art. 168-A do CP (apropriação
indébita previdenciária);
• Art. 337-A do CP (sonegação de
contribuição previdenciária).
Repare, portanto, que o
descaminho (art. 334 do CP) não está listado nessas duas leis.
Apesar disso, a jurisprudência majoritária
entendia que as disposições dessas leis deveriam ser aplicadas, por analogia,
ao descaminho. Isso porque, segundo sustentavam os julgados, o descaminho,
assim como esses quatro acima listados, também seria um crime tributário
material, motivo pelo qual não haveria razão de receber tratamento
diferenciado. Logo, se o réu efetuasse o pagamento integral da dívida tributária,
havia a extinção da punibilidade. Veja julgado recente nesse sentido:
“Embora o crime de descaminho
encontre-se, topograficamente, na parte destinada pelo legislador penal aos
crimes praticados contra a Administração Pública, predomina o entendimento no
sentido de que o bem jurídico imediato que a norma inserta no art. 334 do
Código Penal procura proteger é o erário público - diretamente atingido pela
evasão de renda resultante de operações clandestinas ou fraudulentas. Cuida-se,
ademais, de crime material, tendo em vista que o próprio dispositivo penal
exige a ilusão, no todo ou em parte, do pagamento do imposto devido. Assim,
mostra-se possível a extinção da punibilidade pelo delito de descaminho, ante o
pagamento do tributo devido, nos termos do que disciplinam os arts. 34, caput,
da Lei nº 9.249⁄1995, 9º, § 2º, da Lei nº 10.684⁄2003 e 83, § 4º, da Lei nº
9.430⁄1996, com redação dada pela Lei nº 12.382⁄2011.” (STJ. 5ª Turma. HC
265.706/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 28/05/2013).
A
jurisprudência ainda entende dessa forma? Se o denunciado pelo crime de
descaminho fizer o pagamento integral da dívida tributária, haverá extinção da
punibilidade?
NÃO. O STJ
mudou seu entendimento sobre o tema. Segundo a posição atual do STJ, o pagamento do tributo devido NÃO extingue a punibilidade do crime de
descaminho.
STJ. 5ª Turma.
RHC 43.558-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 5/2/2015 (Info 555).
Por quê?
Antes o STJ entendia que o crime
de descaminho era material. Ocorre que,
em 2013, a Corte decidiu rever sua posição e passou a decidir que o descaminho é
delito FORMAL. Essa é a posição que vigora atualmente tanto no STJ como no STF.
Repetindo: o descaminho É CRIME FORMAL.
Na ocasião, afirmou-se que o bem
jurídico tutelado pelo art. 334 do CP não é apenas o valor do imposto sonegado,
pois, além de lesar o Fisco, o crime atinge a estabilidade das atividades
comerciais dentro do país, dá ensejo ao comércio ilegal e à concorrência
desleal, gerando uma série de prejuízos para a atividade empresarial brasileira.
Desse modo, o STJ passou a
entender que o descaminho não pode ser equiparado aos crimes materiais contra a
ordem tributária, o que revela a impossibilidade de que o agente acusado da
prática do crime de descaminho tenha a sua punibilidade extinta pelo pagamento
do tributo.
Como
vimos acima, o art. 9º da Lei n.°
10.684/2003 e o art. 83 da Lei n.°
10.684/2003 preveem a extinção da punibilidade pelo pagamento dos débitos
fiscais apenas no que se refere aos crimes contra a ordem tributária e de
apropriação ou sonegação de contribuição previdenciária – arts. 1º e 2º da Lei
8.137/1990, 168-A e 337-A do CP. Se o crime de descaminho não se assemelha aos
crimes acima mencionados, em razão de defenderem bens jurídicos diferentes, mostra-se
inviável a aplicação, por analogia, dessas leis ao descaminho.
E quanto ao princípio da
insignificância, o STJ continua aplicando ao descaminho cujo valor dos tributos
não superar R$ 10 mil?
SIM. Ao considerar que o descaminho
não é crime material (mas sim formal) e que ele defende outros bens jurídicos
além da arrecadação, a consequência lógica seria não mais utilizar o parâmetro
de R$ 10 mil reais como critério para a aplicação do princípio da insignificância.
No entanto, não foi isso que se verificou e o STJ continua aplicando o
princípio da insignificância ao crime de descaminho quando o valor dos tributos
elididos não ultrapassar a quantia de dez mil reais, estabelecida no art. 20 da
Lei n. 10.522/02 (STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1453259/PR, Rel. Min. Felix
Fischer, julgado em 05/02/2015).