Lei 13.106/2015 e o art. 243 do ECA
Foi publicada hoje a Lei n.° 13.106/2015, que altera o
ECA para tornar crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida
alcoólica a criança ou a adolescente.
A Lei n.° 13.106/2015 modificou o art. 243
do ECA, que passa a ter a seguinte redação:
Art. 243. Vender, fornecer, servir,
ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou
a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos
componentes possam causar dependência física ou psíquica:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro)
anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
Redação anterior
Compare a redação anterior com a
atual:
ANTERIOR
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ATUAL
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Art. 243. Vender, fornecer
ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança
ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar
dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
Pena – detenção de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
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Art. 243. Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de
qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida
alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes
possam causar dependência física ou psíquica:
Pena – detenção, de 2 (dois) a
4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
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A punição penal da conduta de fornecer bebida alcoólica a crianças e
adolescentes
Antes da Lei n.° 13.106/2015, quem vendia
bebida alcoólica a criança ou adolescente cometia crime do art. 243 do ECA?
NÃO. O STJ entendia que o art.
243 do ECA, ao falar em “produtos cujos componentes possam causar dependência
física ou psíquica” não abrangia as bebidas alcoólicas. Isso porque, na visão
do STJ, o ECA, quando quis se referir às bebidas alcoólicas, o fez expressamente,
como no caso do art. 81, II e III, onde prevê punições administrativas para
essa venda:
Art. 81. É proibida a
venda à criança ou ao adolescente de:
II - bebidas alcoólicas;
III - produtos cujos
componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por
utilização indevida;
E o agente ficava sem nenhuma
punição penal?
O sujeito que “servia” bebida
alcoólica para crianças e adolescentes não cometia crime, mas respondia pela
contravenção penal prevista no art. 63, I do Decreto-lei n.° 3.688/41:
Art. 63. Servir bebidas
alcoólicas:
I – a menor de dezoito
anos;
(...)
Pena – prisão simples, de
dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.
Assim, por mais absurdo que
pareça, a conduta de fornecer bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes,
apesar de gravíssima, não era crime. O agente respondia
apenas por contravenção penal.
Veja um precedente recente do STJ
espelhando esse entendimento:
(...) A entrega a consumo
de bebida alcoólica a menores é comportamento deveras reprovável. No entanto, é
imperioso, para o escorreito enquadramento típico, que se respeite a pedra
angular do Direito Penal, o princípio da legalidade. Nesse cenário, em
prestígio à interpretação sistemática, levando em conta os arts. 243 e 81 do
ECA, e o art. 63 da Lei de Contravenções Penais, de rigor é o reconhecimento de
que neste último comando enquadra-se o comportamento em foco. (...)
(STJ. 6ª Turma. HC
167.659/MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 07/02/2013)
O que fez a Lei n.° 13.106/2015?
• Passou a prever, expressamente,
que é crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a
criança ou a adolescente.
• Revogou a contravenção penal
prevista no art. 63, I, considerando que esta conduta agora é punida no art.
243 do ECA.
Não sou entusiasta da
criminalização desenfreada de novas condutas, mas esta era uma mudança
necessária, considerando que havia uma proteção deficiente a este bem jurídico
tão importante e protegido constitucionalmente (art. 227). Era inadmissível que
o fornecimento de bebida alcoólica a crianças e adolescentes continuasse sendo
punido apenas como contravenção penal, especialmente se considerarmos os
malefícios do consumo precoce de álcool por pessoas que ainda estão com seu
organismo em formação, causando dependência física ou psíquica, além de efeitos
deletérios à saúde.
Vamos aproveitar que estamos
estudando o tema para revermos os principais aspectos do crime previsto no art.
243 do ECA:
Em que consiste o delito:
- Vender (comércio
formal ou informal),
- fornecer (expressão ampla que significar dar),
- servir (por na mesa, no copo etc.),
- ministrar (aplicar em alguém) ou
- entregar (deixar à disposição de alguém),
- ainda que gratuitamente,
- de qualquer forma,
- a criança (pessoa que tem até 12 anos de idade incompletos);
- ou a adolescente (pessoa que tem entre 12 e 18 anos de idade),
- bebida alcoólica (líquido que contenha álcool etílico em sua
composição),
- ou outros produtos cujos componentes possam causar dependência física
ou psíquica (ex.1: remédio de venda controlada; ex.2: cola de sapateiro).
Bem jurídico: saúde física e psíquica das crianças e adolescentes.
Sujeito ativo: pode ser praticado por qualquer pessoa (crime
comum).
Sujeito passivo: a vítima deve ser pessoa menor de 18 anos (criança
ou adolescente).
Elemento subjetivo: dolo (direto ou eventual).
Obs.1: não se exige elemento
subjetivo especial (“dolo específico”).
Obs.2: não haverá crime se o
sujeito agiu apenas com culpa.
A questão do dolo eventual:
O tipo penal do art. 243 do ECA
não admite a forma culposa. No entanto, importante ressaltar que o sujeito
poderá responder pelo delito caso tenha agido com dolo eventual. Ex: jovem de
15 anos, com aparência infantil, pede ao dono do bar que lhe venda uma vodka; o
proprietário pergunta a idade do rapaz e ele responde que tem 18 anos; o dono
do estabelecimento não acredita na afirmação, mas pensa “tanto faz, não me
importo”, e vende a bebida; o agente responderá pelo crime do art. 243 do ECA,
tendo atuado com dolo eventual porque não tinha certeza da idade, mas pensava
concretamente que poderia ser adolescente e, apesar disso, demonstrou total
desprezo pelo bem jurídico tutelado pela norma penal.
A punição do crime por dolo
eventual reforça a necessidade de que os proprietários e funcionários de
estabelecimentos onde se venda bebidas alcoólicas exijam documento de
identidade dos compradores, prática usual em outros países do mundo onde se
pune com rigor a comercialização de tais produtos a crianças e jovens.
A questão do erro de tipo:
É possível também que se
reconheça, no caso concreto, a ocorrência de erro de tipo quanto à condição de
adolescente da vítima. Imaginemos que o adolescente tenha conseguido ingressar
em uma boate exclusiva para adultos, onde há rígida exigência de apresentação
do documento de identidade na portaria a fim de que só adentrem maiores de 18
anos. Esse jovem, que tem estrutura e fisionomia de adulto, chega ao bar da
boate e pede um whisky. O barman serve a bebida. Obviamente, que o sujeito não
responderá pelo crime porque agiu desconhecendo que o cliente era um
adolescente, ou seja, desconhecia a elementar do tipo descrita no art. 243 do
ECA. As peculiaridades envolvendo o caso concreto faziam com que ele
acreditasse que o adquirente fosse maior de 18 anos. Trata-se de um erro sobre
elemento constitutivo do tipo legal, que exclui o dolo, na forma do art. 20, caput, do CP.
Tipo misto alternativo:
Repare que o tipo penal descreveu
várias condutas (verbos). Se o sujeito praticar mais de um verbo, no mesmo
contexto fático e com relação à mesma vítima, responderá por um único delito,
não havendo concurso de crimes nesse caso. Ex.: o dono do bar vende a ficha da
cerveja, serve no copo do adolescente parte do líquido e entrega a garrafa com
o restante que lá ficou. Praticou vários verbos, mas responderá por um único
crime.
Fornecimento de mais de uma bebida no mesmo contexto fático:
Se o agente vende, fornece,
entrega mais de uma bebida alcoólica para a mesma vítima, no mesmo contexto
fático, responderá por um só crime. Ex.: durante a festa, o barman vende
tequila, depois vodka, whisky e, por fim, cachaça para uma adolescente de 17
anos. Este sujeito não praticou quatro delitos diferentes, mas sim um único
crime do art. 243. Obviamente que essa reiteração de conduta e com fornecimento
de bebidas diferentes, o que potencializa os danos à saúde da vítima, será considerada
como circunstância judicial negativa no momento da dosimetria da pena.
“Sem justa causa”
Se você ler o tipo novamente irá
verificar que o legislador exigiu um “elemento normativo” para que haja a
punição do sujeito: o agente deverá ter fornecido a substância “sem justa
causa” (sem um justo motivo) para isso. Se estiver presente a justa causa, não
haverá o crime.
Ex: se um médico psiquiatra
diagnostica que determinada criança sofre de doença mental e a ela ministra um
remédio de uso controlado, este profissional não responderá pelo crime porque não
estará presente o elemento normativo do tipo, já que o médico possui uma justa
causa para fornecer o medicamento. Trata-se de fato atípico.
Importante destacar, contudo, que
esse elemento normativo do tipo não é exigido para o caso de fornecimento de
bebidas alcoólicas. Em outras palavras, o legislador não cogitou que exista algum
caso em que o agente possa fornecer, com justa causa, bebida alcoólica para
criança e adolescente. Contudo, se for possível imaginar alguma situação nesse
sentido, a solução penal terá que ser dada, a depender do caso concreto,
utilizando-se das causas excludentes de antijuridicidade ou de culpabilidade.
Tipo penal aberto X norma penal em branco
Cuidado para não confundir. O
delito do art. 243 do ECA não é uma norma penal em branco. Isso porque ele não depende
de complemento normativo. Não existe uma lei, decreto, portaria etc. que diga o
que são bebidas alcoólicas ou produtos cujos componentes possam causar
dependência física ou psíquica.
O delito do art. 243 do ECA é um
tipo penal aberto e qualquer produto poderá ser enquadrado no conceito
fornecido, desde que possua, em sua composição, substâncias que possam causar
dependência física ou psíquica.
Repare, portanto, que, neste
ponto, difere bastante do tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas, um exemplo
clássico de norma penal em branco.
“Se o fato não constitui crime mais grave”
O agente só responderá pelo crime
do art. 243 do ECA se essa mesma conduta que ele praticou não constituir crime
mais grave. Desse modo, o delito em questão é expressamente subsidiário. Ex: se
um traficante fornece maconha para um adolescente, responderá pelo crime do
art. 33 c/c art. 40, VI, da Lei n.°
11.343/2006 (e não pelo art. 243 do ECA, que é menos grave).
Consumação:
O delito é formal (não depende, para a sua consumação, da ocorrência de um
resultado naturalístico). Assim, tendo havido a venda, fornecimento, entrega
etc. o crime já se consumou, mesmo que a criança ou adolescente não ingira
a bebida ou use o produto. Repetindo: não se exige o efetivo consumo
para que o delito se consuma. Também não é necessário que a vítima tenha algum
problema de saúde por conta da substância. O delito é formal, basta a conduta,
não se exigindo resultado. Trata-se de crime de perigo.
Tentativa: é possível.
Duas questões finais interessantes:
1) Se o agente fornecer bebida alcoólica que não será consumida pela
criança ou adolescente, haverá o crime? Ex: Joãozinho, 15 anos, vai até a
mercearia do bairro comprar cerveja para seu pai. Se houver a venda, mesmo que fique
provado que a bebida não era para o jovem, haverá o delito?
SIM. O delito é formal, ou seja, não
depende, para a sua consumação, da ocorrência de um resultado naturalístico.
Assim, tendo havido a venda, fornecimento, entrega etc., o crime já se
consumou, mesmo que a criança ou adolescente não ingira a bebida ou use o
produto. O tipo penal não exige que a criança ou o adolescente seja o
destinatário final da bebida ou produto. O legislador quer antecipar a proteção
e evitar que a criança ou adolescente tenha acesso a tais mercadorias.
2) Se o pai, a título de brincadeira, permite que o filho, criança ou
adolescente, dê um gole em sua bebida alcoólica, haverá crime?
Em tese, sim. A referida conduta preenche
formalmente os requisitos típicos do art. 243 do ECA. O fato de ser pai ou mãe
da criança ou do adolescente não confere ao genitor(a) livre disponibilidade
sobre a saúde do(a) filho(a). Segundo a literatura médica, não existem níveis
seguros de ingestão de álcool para pessoas menores de 18 anos. Em outras
palavras, por menor que seja o consumo, ele já tem o potencial de causar danos
à saúde física e/ou psíquica da criança ou adolescente.
Poder-se-ia iniciar um debate
quanto à eventual aplicação do princípio da insignificância neste caso, mas em
se tratando de um bem jurídico tão relevante, os critérios para sua incidência deverão
ser ainda mais rigorosos.
Classificação doutrinária do delito: crime comum, de forma livre, comissivo,
doloso, anormal, de perigo, unissubjetivo, plurissubistente, instantâneo e que
admite tentativa.
Infração administrativa
O ECA, em sua redação original,
já previa como proibida a comercialização de bebidas alcoólicas para menores de
18 anos. Veja:
Art. 81. É proibida a
venda à criança ou ao adolescente de:
II - bebidas alcoólicas;
Não havia, contudo, uma punição
administrativa expressa para quem descumprisse essa vedação. Pensando nisso, a
Lei n.° 13.106/2015 acrescentou
artigo ao ECA estipulando uma multa para quem desatende a regra:
Art.
258-C. Descumprir a proibição estabelecida no inciso II do art. 81:
Pena
– multa de R$ 3.000,00 (três mil reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais);
Assim, por exemplo, se um dono de
bar vende cerveja para um jovem de 17 anos, ele responderá agora pelo crime do
art. 243 do ECA e também, como sanção administrativa, pela multa do art. 258-C.
Resumindo:
O QUE FEZ A LEI N.°
13.106/2015:
• Passou a prever, expressamente,
que é crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a
criança ou a adolescente.
• Revogou a contravenção
penal prevista no art. 63, I, do Decreto-lei 3.688/41, considerando que esta
conduta agora é punida no art. 243 do ECA.
• Fixou multa administrativa
de R$ 3 mil a R$ 10 mil para quem vender bebidas alcoólicas para crianças ou
adolescentes (essa multa é independente da sanção criminal).
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor. Juiz
Federal.
Foi Defensor Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.