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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O encerramento irregular da empresa é causa, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica?


Princípio da autonomia patrimonial
As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que, obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.
De igual modo, o patrimônio da pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios. Ex.1: se uma sociedade empresária possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria pessoa jurídica.
Ex.2: se uma sociedade empresária possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria sociedade, não podendo para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal dos sócios.
Vigora, portanto, o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

Desconsideração da personalidade jurídica
O ordenamento jurídico prevê algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.
Tais hipóteses são chamadas de “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade jurídica).
Quando se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

Por que foi idealizada essa teoria da desconsideração da personalidade jurídica?
A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas sempre foi um instrumento muito importante para o desenvolvimento da economia e da atividade empresarial. Isso porque serviu para estimular os indivíduos a praticarem atividades econômicas, uma vez que, constituindo pessoas jurídicas, as pessoas físicas sabiam que apenas o patrimônio da sociedade empresária responderia pelas dívidas em caso de insucesso. Com isso, as pessoas físicas ficavam mais seguras, já que, mesmo que o empreendimento não prosperasse, elas não perderiam também o seu patrimônio pessoal não investido na sociedade.
Ocorre que alguns indivíduos começaram a abusar da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, utilizando-a como um meio de praticar fraudes. A pessoa jurídica, após adquirir diversas dívidas, transferia todo o lucro e patrimônio para o nome dos sócios e, com isso, não tinha como pagar os compromissos assumidos, não sobrando bens da sociedade que pudessem ser executados pelos credores.
Percebendo esse abuso, a jurisprudência passou a permitir a desconsideração da personalidade jurídica nessas hipóteses. Posteriormente, foram editadas leis prevendo expressamente a possibilidade da desconsideração.

Histórico da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
• CC-1916: não previa a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica.
• Na década de 60, Rubens Requião foi um dos primeiros doutrinadores brasileiros a defender a aplicação da teoria no Brasil, mesmo sem previsão legal.
• CDC em 1990: primeira lei a prever a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no Brasil (art. 28).
• Lei nº 8.884/94 (antiga Lei Antitruste): previu a desconsideração.
• Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais): também disciplinou a desconsideração.
• Código Civil de 2002: trouxe previsão expressa no art. 50.
• Lei nº 12.529⁄2011: desconsideração em caso de infrações da ordem econômica (art. 34).

Desconsideração da personalidade jurídica no CC-2002
A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada no art. 50 do CC:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Desse modo, na desconsideração da personalidade jurídica, o juiz, mediante requerimento, autoriza que os bens particulares dos administradores ou sócios sejam utilizados para pagar as dívidas da pessoa jurídica, mitigando, assim, a autonomia patrimonial.

Abuso da personalidade jurídica
Somente poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas regidas pelo Código Civil se ficar caracterizado que houve abuso da personalidade jurídica.

O abuso da personalidade jurídica pode ocorrer em duas situações:

1) Desvio de finalidade: é o ato intencional dos sócios em fraudar terceiros utilizando a autonomia da pessoa jurídica como um escudo;

2) Confusão patrimonial: ocorre quando, na prática, não há separação entre o que seja patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios. Ex: todas as despesas pessoais dos sócios são pagas com o cartão de crédito da empresa, os veículos utilizados são da empresa, os funcionários fazem serviços pessoais para os sócios etc.

Teorias maior e menor da desconsideração
Como vimos acima, a desconsideração da personalidade jurídica não é prevista apenas no Código Civil. Existem outros importantes diplomas que tratam sobre o tema, como é o caso do CDC e da Lei Ambiental. Ocorre que nem todas as leis trazem os mesmos requisitos para a desconsideração. A partir daí surgiram dois grupos de legislações separadas a partir dos requisitos impostos para a desconsideração. Confira:

Teoria MAIOR
Teoria MENOR
O Direito Civil brasileiro adotou a chamada teoria maior da desconsideração. Isso porque o art. 50 exige, além da insolvência, que se prove o desvio de finalidade (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva).
No Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, adotou-se a teoria menor da desconsideração. Isso porque, para que haja a desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas envolvendo consumo ou responsabilidade civil ambiental, basta provar a insolvência da pessoa jurídica.
Deve-se provar:
1) Insolvência
2) Abuso da personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial)
Deve-se provar apenas a insolvência.
Art. 4º da Lei n.° 9.605/98 (Lei Ambiental).
Art. 28, § 5º do CDC.

Obs: alguns autores criticam essa divisão entre teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica, afirmando que essa dicotomia está ultrapassada. É o caso, por exemplo, de Fábio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Comercial, Vol. 2. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012). Tais expressões, contudo, continuam presentes na jurisprudência do STJ e são cobradas em concurso, razão pela qual vocês deverão saber.

Feitas essas considerações, imagine a seguinte situação hipotética:
A empresa “A” emitiu notas promissórias em favor da empresa “B” em um contrato empresarial. Os títulos de crédito venceram e a devedora não pagou o débito, razão pela qual a empresa “B” ajuizou execução de título extrajudicial.
Tentou-se a citação da empresa “A” em sua sede (um ponto alugado), mas ficou constatado que ela havia encerrado suas atividades, já que o local estava abandonado.
Diante disso, e tendo apenas essas informações, a exequente pediu ao juiz o redirecionamento da execução para os sócios da empresa “A” (João e Pedro), alegando unicamente que isso seria possível em virtude de ela ter encerrado irregularmente suas atividades.
A exequente afirmou que deveria ser aplicado, ao caso concreto, o raciocínio do enunciado 435 do STJ:
Súmula 435-STJ: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.

A tese do exequente é aceita pelo STJ? Nas relações jurídicas regidas pelo Código Civil, o encerramento irregular das atividades da empresa autoriza, por si só, a desconsideração da pessoa jurídica e o consequente direcionamento da execução para a pessoa do sócio?
NÃO. O encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não é causa, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica prevista no Código Civil.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1306553/SC, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 10/12/2014.

Essa é a posição também da doutrina majoritária, conforme restou consignado no Enunciado da IV Jornada de Direito Civil do CJF:
282 – Art. 50: O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica.

Obs: não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial (Min. Maria Isabel Gallotti). Em outras palavras, o encerramento irregular pode ser um indício de que houve abuso da personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), mas serão necessárias outras provas para que se cumpra o que exige o art. 50 do CC.

Mas e a Súmula 435 do STJ?
O raciocínio do enunciado 435 do STJ não pode ser aplicado para as relações de Direito Civil por duas razões:
1) O Código Civil traz regras específicas sobre o tema, diferentes das normas do CTN, que inspiraram a edição da súmula. Como vimos acima, cada diploma legislativo, cada microssistema jurídico trouxe suas regras próprias para a desconsideração, devendo isso ser considerado pelo intérprete. Isso foi registrado pela doutrina na I Jornada de Direito Civil:
51 – Art. 50: A teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.

2) A Súmula 435 do STJ não trata sobre desconsideração da personalidade, mas sim sobre redirecionamento da execução fiscal à luz de regras próprias do CTN, não sendo possível que as normas de um sejam aplicadas indistintamente ao outro.

Quadro-resumo:
O encerramento irregular das atividades da empresa devedora autoriza, por si só, que se busque os bens dos sócios para pagar a dívida?
• Código Civil: NÃO
• CDC: SIM
• Lei Ambiental: SIM
• CTN: SIM



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