Imagine a seguinte situação adaptada:
João, de boa-fé, construiu um pequeno
quiosque (bar) na beira da praia, de frente para o mar.
A União ajuizou ação reivindicatória
contra João alegando que a praia marítima é bem da União (art. 20, IV, da
CF/88), sendo classificada como bem de uso comum do povo, o que impede sua
apropriação privada. Além disso, não houve autorização para que fosse realizada
a edificação no local.
O réu apresentou contestação, na
qual afirmou que construiu o quiosque com seus próprios recursos e, por isso, deveria
ser indenizado pelas acessões e benfeitorias que fez no local e que, se não
fosse compensado, poderia reter as benfeitorias realizadas.
Invocou para tanto o art. 1.219
do CC:
Art. 1.219. O possuidor de
boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem
como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o
puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo
valor das benfeitorias necessárias e úteis.
Obs: apesar de o art. 1.219 do CC
mencionar apenas “benfeitorias”, a doutrina majoritária e o STJ entendem que o
direito de retenção abrange também as acessões (como é o caso de um
estabelecimento comercial construído em um terreno). Nesse sentido: STJ. 3ª
Turma. Resp 1.316.895/SP, julgado em 11/06/2013.
Foi o entendimento consagrado na
I Jornada de Direito Civil do CJF/STF:
Enunciado 81: O direito de
retenção previsto no art. 1.219 do CC, decorrente da realização de benfeitorias
necessárias e úteis, também se aplica às acessões (construções e plantações)
nas mesmas circunstâncias.
A tese de João é aceita pela
jurisprudência do STJ?
NÃO. Para o STJ, nos casos em que
o bem público foi ocupado irregularmente, a pessoa não tem direito de ser
indenizada pelas acessões feitas, assim como não tem direito à retenção pelas benfeitorias
realizadas.
Mesmo que a pessoa tenha ocupado
o bem público de boa-fé?
Mesmo que fique provado que a
pessoa estava de boa-fé, ela não terá direito à indenização nem à retenção.
Por quê?
Porque a ocupação irregular de
bem público não pode ser classificada como posse. Trata-se de mera detenção, possuindo,
portanto, natureza precária.
Posse é o direito reconhecido a
quem se comporta como proprietário. Não há como se reconhecer a posse a quem, por
proibição legal, não possa ser proprietário. Se a pessoa não pode ser proprietária
porque aquele bem é público, não existe posse (REsp 863.939/RJ, Rel. Min. Eliana
Calmon, julgado em 04/11/2008).
Assim, a ocupação de área
pública, quando irregular, não pode ser reconhecida como posse, mas como mera
detenção.
Se o direito de retenção ou de
indenização pelas acessões e benfeitorias realizadas depende da configuração da
posse, não se pode reconhecer tais direitos, já que não existe posse.
Dessa forma, havendo ocupação
indevida do bem público, resta afastado o direito de retenção por benfeitorias
e o pleito indenizatório, mesmo que esteja presente a boa-fé.
E se em sua prova prática de
concurso o enunciado alegar que o Poder Público foi omisso na fiscalização dessa
edificação, como refutar essa tese?
“Eventual inércia ou tolerância
da Administração não tem efeito de afastar ou distorcer a aplicação da lei. Não
fosse assim, os agentes públicos teriam, sob sua exclusiva vontade, o poder de
afastar normas legais cogentes, instituídas em observância e como garantia do
interesse da coletividade.
O imóvel público é indisponível,
de modo que eventual omissão dos governos implica responsabilidade de seus
agentes, nunca vantagem de indivíduos às custas da coletividade.
Invasores de áreas públicas não
podem ser considerados sócios ou beneficiários da omissão, do descaso e da
inércia daqueles que deveriam zelar pela integridade do patrimônio coletivo.
Saliente-se que o Estado pode – e
deve – amparar aqueles que não têm casa própria, seja com a construção de
habitações dignas a preços módicos, seja com a doação pura e simples de
residência às pessoas que não podem por elas pagar. É para isso que existem as
Políticas Públicas de Habitação federais, estaduais e municipais. O que não se mostra razoável é torcer as
normas que regram a posse e a propriedade para atingir tais objetivos sociais
e, com isso, acabar por dar tratamento idêntico a todos os que se encontram na
mesma situação de ocupantes ilegais daquilo que pertence à comunidade e às gerações
futuras – ricos e pobres.” (trecho do voto do Min. Teori Zavascki no REsp
850.970/DF, julgado em 01/03/2011).
E se o enunciado alegar que a
negativa de indenização gerará um enriquecimento sem causa da Administração Pública,
como afastar tal argumento?
Deve-se explicar que essa construção
foi feita em desacordo com a legislação urbanística e ambiental, sendo ainda
realizada em um local que é classificado como área de uso comum do povo. Logo, não
será possível que a União aproveite economicamente essa edificação.
Ao contrário, o Poder Público terá
despesas para demolir a construção feita ou, no máximo, regularizar a edificação
para adequá-la à legislação vigente.
Desse modo, “seria incoerente
impor à Administração a obrigação de indenizar por imóveis irregularmente
construídos que, além de não terem utilidade para o Poder Público, ensejarão
dispêndio de recursos do Erário para sua demolição.” (Min. Teori Zavascki).
RESUMINDO:
Se o indivíduo ocupou irregularmente um bem
público, ele terá que ser retirado do local e não receberá indenização pelas
acessões feitas nem terá direito à retenção pelas benfeitorias realizadas,
mesmo que ele estivesse de boa-fé. Isso porque a ocupação irregular de bem
público não pode ser classificada como posse. Trata-se de mera detenção,
possuindo, portanto, natureza precária, não sendo protegida juridicamente.
Desse modo, quando irregularmente ocupado o
bem público, não há que se falar em direito de retenção pelas benfeitorias
realizadas, tampouco em direito a indenização pelas acessões, ainda que as
benfeitorias tenham sido realizadas de boa-fé. Ex: pessoa que construiu um bar
na beira da praia (bem da União).
STJ.
2ª Turma. AgRg no REsp 1.470.182-RN, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado
em 4/11/2014 (Info 551).
Julgado extremamente importante
para concursos da Advocacia Pública.
Bons estudos.
Até amanhã.