quarta-feira, 12 de novembro de 2014
O chamado “excesso doloso” não deve mais ser quesitado no Tribunal do Júri
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
Tribunal do Júri
O julgado aqui comentado envolve
o procedimento no Tribunal do Júri.
Concluídos os debates
Concluídos os debates entre
acusação e defesa, o juiz-presidente do Júri (Juiz de Direito ou Juiz Federal)
perguntará aos sete jurados se eles se sentem prontos para julgar ou se ainda
precisam de mais algum esclarecimento sobre alguma questão
de fato (§ 1º do art. 480 do CPP).
Na prática, em 90% dos casos, os
jurados respondem que estão habilitados para julgar, até porque não veem a hora
de ir para casa.
De
qualquer forma, se houver dúvida sobre questão de fato, o juiz-presidente
prestará esclarecimentos à vista dos autos, ou seja, com base no que tem no
processo (§ 2º do art. 480). Os jurados, nesta fase do procedimento, podem ter
acesso aos autos e aos instrumentos do crime se solicitarem ao magistrado (§
3º).
É importante o juiz ter especial
cuidado com as perguntas que serão feitas pelos jurados, explicando previamente
a eles que, ao expressarem sua dúvida, não poderão “adiantar” ou “sinalizar”
como irão votar, sob pena de o Conselho de Sentença ter que ser dissolvido,
prejudicando todo o dia de trabalho.
Sala secreta
Não havendo dúvida a ser
esclarecida, o juiz, o membro do MP, o advogado, os sete jurados (Conselho de
Sentença), o escrivão (diretor de secretaria) e o oficial de justiça irão se
dirigir a uma “sala especial” para a votação dos quesitos (art. 485 do CPP).
Essa sala especial é chamada, na
prática forense, de “sala secreta” porque é onde ocorrerá a votação.
O júri normalmente acontece em um
auditório e essa sala especial é um gabinete menor, que fica ao lado do
auditório.
Se na estrutura do fórum não
houver uma sala que possa servir para esse fim, o juiz deverá pedir que todas
as pessoas que estão no auditório se retirem e a votação é feita no próprio
Plenário.
Alguns magistrados permitem que,
mesmo durante a votação secreta, estudantes de direito e outros advogados que
estejam acompanhando a sessão permaneçam no recinto. Segundo a jurisprudência,
essa prática é admitida, não havendo nulidade. Particularmente, contudo, penso
que não é o ideal porque alguns jurados ficam amedrontados e nervosos durante a
votação e, por isso, quanto menos pessoas na sala, melhor.
Quesitos
A votação no Júri ocorre por meio
de perguntas escritas que são feitas aos jurados. Essas perguntas são chamadas
de “quesitos”. Os jurados respondem depositando em uma urna o papel escrito SIM
ou NÃO para cada uma das indagações que são formuladas.
Art. 482. O Conselho de
Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser
absolvido.
Parágrafo único. Os
quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de
modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária
precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da
pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório
e das alegações das partes.
Art. 483. Os quesitos
serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
I – a materialidade do
fato;
II – a autoria ou
participação;
III – se
o acusado deve ser absolvido;
IV – se existe causa de
diminuição de pena alegada pela defesa;
V – se existe
circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na
pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
Imaginemos que a defesa do réu,
em Plenário, alegou legítima defesa (art. 23, II, do CP).
A acusação, por sua vez, sustentou
a tese de excesso doloso (art. 23, parágrafo único, do
CP). Para a o MP, o réu, mesmo depois de fazer cessar a agressão, continuou o
ataque porque passou a querer a morte do agressor. Segundo o Promotor, após o
acusado se defender da agressão inicial, ele teria dito à vítima: “Queria me matar? Agora você é quem vai
morrer”.
Com base nas teses alegadas, o
juiz preparou os seguintes quesitos que foram formulados aos jurados:
1º) Quesitos sobre a materialidade do fato (inciso I):
“Em XX, por volta de XX horas, na Rua XX, bairro XX, nesta Comarca, a
vítima XXX foi atingida por disparos de arma de fogo, sofrendo as lesões
descritas no laudo de fls. XX?”
Por meio das cédulas, os jurados
responderam SIM.
“Essas lesões foram a causa da morte da vítima?”
Os jurados também responderam
SIM.
2º) Quesito sobre a autoria (inciso II):
“O acusado foi o autor dos disparos referidos no primeiro quesito?”
Os jurados igualmente responderam
SIM a esse quesito.
Como os jurados responderam sim
para os quesitos da materialidade e autoria, isso significa que disseram que o
homicídio aconteceu (materialidade) e que ele foi causado pelo réu (autoria).
Nesse caso, veja o que diz o § 2º do art. 483 do CPP:
§ 2º Respondidos
afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos
I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:
O jurado absolve o
acusado?
3º) Quesito sobre a absolvição do réu:
“O jurado absolve o acusado?”
Quanto a esse quesito, os jurados
também responderam SIM.
O magistrado formulou, então,
mais uma pergunta aos jurados:
4º) Quesito da tese do MP
“O acusado excedeu dolosamente os limites da legítima defesa?”
Os jurados responderam SIM para
esse 5º quesito e o réu foi condenado.
A defesa recorreu contra a sentença.
No apelo, argumentou que, tendo os jurados respondido SIM para o quesito
defensivo (“O jurado absolve o acusado?”), o julgamento deveria ter sido
encerrado. Logo, não deveria ter sido quesitado mais nada.
O STJ concordou com a defesa?
SIM. Se a legítima defesa foi
suscitada como tese defensiva perante o Conselho de Sentença e os jurados
responderam afirmativamente ao terceiro quesito (“O jurado absolve o acusado?”),
o Juiz Presidente do Tribunal do Júri deveria encerrar o julgamento e concluir
pela absolvição do réu. Como os jurados já responderam que absolviam o acusado,
o juiz não deveria mais ter feito quesito perguntando sobre a existência de eventual
excesso doloso alegado pela acusação.
As regras do CPP sobre a quesitação
no Tribunal do Júri foram alteradas pela Lei n.°
11.689/2008. Assim, atualmente, não existe mais um quesito específico sobre a
legítima defesa. Na verdade, ao contrário do que era no passado, não há mais
quesitos específicos sobre cada uma das teses de absolvição (quesito para
legítima defesa, quesito para estado de necessidade, quesito para
inexigibilidade de conduta diversa etc.). Agora, todas as teses defensivas estão
reunidas em um único quesito obrigatório que tem a seguinte redação: “O
jurado absolve o acusado?” (art. 483, III e § 2º, do CPP).
A intenção do legislador ao concentrar
todas as teses absolutórias nesse quesito foi a de evitar que os jurados fossem
indagados sobre aspectos técnicos, ou seja, sobre teses jurídicas.
Portanto, somente se os jurados
tivessem respondido negativamente ao quesito sobre a absolvição é que
eventualmente o excesso doloso poderia ter sido questionado aos Jurados.
Como foi declarada a absolvição
pelo Conselho de Sentença, prosseguir no julgamento para verificar se houve
excesso doloso constituiu constrangimento ilegal ao acusado, além de violar a
plenitude de defesa, pois o atual sistema de quesitação foi idealizado para permitir
justamente que o jurado possa absolver o réu baseado unicamente em sua livre
convicção e de forma independente das teses defensivas.
Logo, conclui-se que, se os
jurados responderem “SIM” para a tese defensiva, o juiz não pode mais elaborar
quesito sobre excesso doloso da legítima defesa. Se essa tese for suscitada
pelo MP em Plenário e os jurados quiserem concordar com a acusação, basta que
eles respondam “NÃO” para o quesito defensivo (“O jurado absolve o acusado?”).
Se responderam “SIM”, é porque não concordaram com os argumentos do MP, sendo
ilegal formular um quesito específico para a tese de acusação.
Resumindo:
Em determinado Júri, o advogado do réu
alegou que este agiu em legítima defesa (art. 23, III, do CP). A acusação, por
sua vez, sustentou que o acusado atuou com excesso doloso (art. 23, parágrafo
único, do CP), devendo ser condenado.
Nos dois primeiros quesitos, os jurados
afirmaram que “SIM” para as perguntas sobre materialidade e autoria.
No terceiro quesito, foi perguntado: “O
jurado absolve o acusado?”. Os jurados também responderam que “SIM”.
Diante disso, o juiz deveria ter encerrado
a votação e proferido sentença absolutória.
Ocorre que o magistrado formulou mais uma
pergunta aos jurados: “O acusado excedeu dolosamente os limites da legítima
defesa?”
Não agiu corretamente o juiz.
Se os jurados responderem “SIM” para a tese
defensiva, o juiz não pode mais elaborar quesito sobre excesso doloso da
legítima defesa. Se essa tese for suscitada pelo MP em Plenário e os jurados
quiserem concordar com a acusação, basta que eles respondam “NÃO” para o
quesito defensivo (“O jurado absolve o acusado?”). Se responderam “SIM”, é
porque não concordaram com os argumentos do MP, sendo ilegal formular um
quesito específico para a tese de acusação.
STJ. 5ª Turma.
HC 190.264-PB, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/8/2014 (Info 545).