Dizer o Direito

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O crime do art. 149 do CP pode ser praticado sem restrição à liberdade de locomoção?



Olá amigos do Dizer o Direito,

Continuando nossa preparação para os concursos federais vindouros, vejamos agora um tema importante sobre mais um crime de competência da Justiça Federal.

Imagine a seguinte situação adaptada:
O MPF denunciou João (fazendeiro) pelo crime previsto no art. 149 do CP (redução a condição análoga à de escravo).
Segundo a denúncia, na fazenda, havia quatro empregados que eram submetidos a condições degradantes de trabalho, que foram assim descritas: “conviver com escorpiões, aranhas, lacraias; repousar em camas velhas os corpos cansados, doloridos do trabalho exaustivo e feridos pela falta de equipamento de proteção individual; beber água armazenada em baldes e ainda tomar um café preto pela manhã desacompanhado de qualquer alimento.”

Decisão do juiz
O juiz federal entendeu que os fatos narrados não configuravam o crime do art. 149 do CP. O argumento invocado pelo magistrado foi o de que, para que se caracterize esse delito, é necessário que haja, de alguma forma, a restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores. Veja trecho da decisão:
“Deve-se esclarecer que não basta simplesmente submeter alguém a trabalhos forçados ou jornadas exaustivas, bem como a condições degradantes de trabalho, para se caracterizar o crime de redução a condição análoga à de escravo.
Isso porque, o tipo penal está inserido no capítulo VI do Título I do Código Penal, ou seja, DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL, necessitando de algum meio - e qualquer que seja - de cerceamento da liberdade, seja, v.g., fraudulento ou artificioso.”

O STJ concordou com a fundamentação invocada pelo juiz? Para que se caracterize o crime do art. 149 do CP é indispensável que haja restrição à liberdade de locomoção das vítimas?
NÃO. Para a configuração do delito de “redução a condição análoga à de escravo” (art. 149 do CP) é desnecessária a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador.

A restrição à liberdade de locomoção do trabalhador é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. Conforme se infere da redação do art. 149 do CP, o tipo penal prevê outras condutas por meio das quais se pode praticar o delito:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

(...)

Esse é também o entendimento do STF:
(...) Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais.
STF. Plenário. Inq 3412, Rel. p/ Acórdão Min. Rosa Weber, julgado em 29/03/2012

Vale lembrar que a competência para julgar o crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) é da Justiça Federal (art. 109, VI, da CF/88).

Sintetizando:
Para configurar o delito do art. 149 do Código Penal (redução a condição análoga à de escravo) NÃO É imprescindível a restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores.
O delito pode ser praticado por meio de outras condutas como no caso em que os trabalhadores são sujeitados a condições degradantes, subumanas.
STJ. 3ª Seção. CC 127.937-GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 28/5/2014 (Info 543).



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