Dizer o Direito

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O crime de estupro (art. 213 do CP) é tipo misto ALTERNATIVO


Olá amigos do Dizer o Direito,

Destaco hoje um tema fundamental sobre Direito Penal envolvendo estupro.

Para concursos estaduais, penso que esse é um dos assuntos mais importantes do ano e será cobrado certamente nos concursos da Defensoria Pública, Magistratura e MP.

Além disso, revela-se de extrema importância prática.

Vamos passo a passo para entender bem a problemática.

Redação original do Código Penal
Na redação original do Código Penal, havia a previsão tanto do crime de “estupro” (art. 213) como do delito de “atentado violento ao pudor” (art. 214). A diferença entre eles era a seguinte:
Estupro: o agente constrangia a vítima para obrigá-la a ter conjunção carnal (= coito vaginal).
Atentado violento ao pudor: o agente constrangia a vítima para obrigá-la a praticar outros atos libidinosos diferentes da conjunção carnal. Exs: coito anal, sexo oral etc.

Lei n.° 12.015/2009
A Lei n.° 12.015/09 alterou o panorama acima explicado e reuniu, em um só tipo penal, as condutas de conjunção carnal e de outras espécies de ato libidinoso.
Agora tanto faz: se o agente constrange a vítima (homem ou mulher) a praticar conjunção carnal ou a realizar qualquer outro ato libidinoso, terá cometido o crime de estupro.
O crime de atentado violento ao pudor foi transportado para dentro do delito de estupro. Compare:
Redação original
Depois da Lei 12.015/2009 (atualmente)

Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:



Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Art. 214: foi revogado e a sua conduta passou a ser descrita no art. 213.

A Lei n.° 12.015/2009, ao revogar o art. 214 do CP, realizou uma abolitio criminis e a conduta de praticar atentado violento ao pudor deixou de ser crime?
NÃO, não houve abolitio criminis, mas sim continuidade normativo-típica, considerando que a Lei n.° 12.015/2009, ao revogar o referido art. 214, inseriu a mesma conduta no art. 213. Ocorreu, então, apenas uma mudança no local onde o delito era previsto, mantendo-se, contudo, a previsão de que essa conduta se trata de crime.
O princípio da continuidade normativa ocorre “quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.” (Min. Gilson Dipp, em voto proferido no HC 204.416/SP).

Antes da Lei n.° 12.015/2009, quando o agente praticava, além da conjunção carnal (coito vaginal), outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, realizava mais de um crime?
SIM. Antes da Lei n.° 12.015/2009, o STF e o STJ entendiam que, se além da conjunção carnal, o agente praticava outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), deveria responder por estupro (art. 213) e por atentado violento ao pudor (art. 214) em concurso material (art. 69).
Exceção: se o ato de libidinagem estava ligado necessariamente com a conjunção carnal (não era independente), esse ato era classificado como um “prelúdio do coito” (praeludia coiti) e haveria crime único. Ex: estuprador que, para realizar o coito vaginal, tocou e segurou nas coxas e nádegas da vítima. Esses “toques” eram considerados como preparação para o coito e, apesar de serem atos libidinosos, haveria apenas um único crime de estupro (art. 213) consumado.

Após a Lei n.° 12.015/2009, quando o agente pratica, além da conjunção carnal (coito vaginal), outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, realiza mais de um crime?
Assim que a Lei n.° 12.015/2009 foi editada surgiram duas correntes principais sobre o art. 213:
1ª corrente: NÃO (trata-se de CRIME ÚNICO)
2ª corrente: SIM (CONCURSO MATERIAL)
A nova redação do art. 213 prevê que é crime constranger alguém a praticar conjunção carnal OU outro ato libidinoso.

O art. 213 previu alternativas: o agente pode praticar o crime mediante conjunção carnal ou outros atos libidinosos.

Se praticar os dois contra a mesma vítima, no mesmo contexto, é o mesmo crime.

Para essa posição, não seria possível reconhecer crime único porque há a prática de condutas diferentes, com modos de execução distintos.
O objetivo do legislador ao revogar o art. 214 do CP não foi o de enfraquecer a proteção da dignidade sexual. Se a intenção fosse tornar crime único, o art. 213 teria previsto apenas a conduta como sendo constranger alguém a praticar ato libidinoso. No entanto, o legislador manteve expressas as duas condutas (conjunção carnal ou outros atos libidinosos).
Logo, se o agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso contra uma só vítima, pratica um só crime do art. 213 do CP (crime único).
Logo, para essa corrente, se o agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso independente contra uma só vítima, tais condutas configurariam dois crimes de estupro (art. 213) em concurso material.
Em suma, para essa 1ª corrente, o art. 213 do CP é classificado como TIPO MISTO ALTERNATIVO.
Em suma, para a 2ª corrente, o art. 213 do CP é TIPO MISTO CUMULATIVO.

Antes de prosseguirmos, vamos relembrar o que é tipo misto.
O tipo penal pode ser dividido em:
Tipo simples: ocorre quando o legislador descreve apenas um verbo para tipificar a conduta. Ex: art. 121 (matar alguém).
Tipo misto: é aquele no qual o legislador descreve dois ou mais verbos, ou seja, mais de uma forma de se realizar o fato delituoso. Ex: art. 34 da Lei de Drogas (o agente pratica o crime se fabricar, adquirir, utilizar etc).

O tipo misto pode ser alternativo ou cumulativo:
Tipo misto alternativo: o legislador descreveu duas ou mais condutas (verbos). Se o sujeito praticar mais de um verbo, no mesmo contexto fático e contra o mesmo objeto material, responderá por um único crime, não havendo concurso de crimes nesse caso. Ex: João adquire, na boca-de-fumo, uma máquina para fazer drogas, transporta-a para sua casa e lá a utiliza. Responderá uma única vez pelo art. 34 e não por três crimes em concurso.
Tipo misto cumulativo: o legislador descreveu duas ou mais condutas (verbos). Se o sujeito incorrer em mais de um verbo, irá responder por tantos crimes quantos forem os núcleos praticados. Ex: art. 242 do CP.

Desse modo, para a 1ª corrente, o estupro é tipo alternativo; para a 2ª corrente, é tipo cumulativo.

Voltando agora à pergunta que ficou sem resposta:
Após a Lei n.° 12.015/2009, quando o agente pratica, além da conjunção carnal (coito vaginal), outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, realiza mais de um crime?
NÃO. Trata-se de CRIME ÚNICO. O STJ definiu que o art. 213 do CP, com redação dada pela Lei n.° 12.015/2009 é tipo penal misto ALTERNATIVO.
Logo, se o agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso contra uma só vítima, pratica um só crime do art. 213 do CP.
Vale ressaltar que havia divergência entre as Turmas do STJ sobre o tema, mas já foi superada, tendo ambas adotado o entendimento do crime único. Nesse sentido:
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1262650/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 05/08/2014.
STJ. 6ª Turma. HC 212.305/DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Des. Conv. TJ/SE), julgado em 24/04/2014.

Percebe-se, portanto, que, nesse ponto, a Lei n.° 12.015/2009 acabou sendo mais favorável ao acusado. Diante disso, indaga-se: se o réu havia sido condenado, antes da Lei n.° 12.015/2009, pelos crimes dos arts. 213 e 214, em concurso material, é possível aplicar o referido diploma legal retroativamente e, rescindindo a condenação, reconhecer agora que ele deve permanecer condenado por um só crime?
SIM. É possível aplicar retroativamente a Lei n.° 12.015/2009 para o agente que praticou estupro e atentado violento ao pudor, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, e que havia sido condenado pelos dois crimes (arts. 213 e 214) em concurso.
Segundo entende o STJ, como a Lei n.° 12.015/2009 unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo tipo penal, deve ser reconhecida a existência de crime único na conduta do agente, caso as condutas tenham sido praticadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto fático, devendo-se aplicar essa orientação aos delitos cometidos antes da vigência da Lei n.° 12.015/2009, em face do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
STJ. 6ª Turma. HC 212.305-DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE), julgado em 24/4/2014 (Info 543).

O fato de o agente ter praticado coito vaginal e também outro ato libidinoso (exs: coito anal, sexo oral) pode ser utilizado pelo juiz para aumentar a pena do réu?
SIM. O juiz irá reconhecer que se trata de crime único, condenando apenas pelo art. 213 do CP com a nova redação dada pela Lei n.° 12.015/2009. No entanto, na 1ª fase da dosimetria da pena (análise das circunstâncias judicias do art. 59), o magistrado deverá aumentar a pena-base considerando que a culpabilidade do agente é mais intensa e as circunstâncias em que o crime foi praticado são mais reprováveis que o normal já que impuseram à vítima um nível de sofrimento ainda maior do que aquele que seria necessário para a consumação do delito. Com efeito, a vítima foi obrigada a realizar dois atos sexuais diferentes. Isso pode (e deve) ser valorado negativamente pelo julgador.

É possível reconhecer o crime único, aplicando retroativamente a Lei n.° 12.015/2009, mesmo que já tenha havido o trânsito em julgado? Nesse caso, como ficará a pena do condenado?
SIM, é possível, nos termos do enunciado 611 do STF:
Súmula 611-STF: Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna.

Assim, caberá ao Juízo da Execução proceder a nova dosimetria da pena, reconhecendo que se trata de crime único por força da Lei n.° 12.0156/2009. Vale lembrar que, nessa nova dosimetria, o magistrado deverá considerar a pluralidade de condutas como sendo aspecto negativo para o fim de aumentar a pena-base (culpabilidade e circunstâncias são negativas).

Por fim, uma última observação importante:
Se o agente pratica conjunção carnal e outros atos libidinosos contra vítimas diferentes ou, então, contra uma só vítima, mas em contextos fáticos diferentes (ex: em dois dias seguidos), haverá continuidade delitiva ou até concurso material, a depender do caso concreto.

Resumindo:
O estupro (art. 213 do CP), com redação dada pela Lei n.° 12.015/2009, é tipo penal misto alternativo. Logo, se o agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso contra uma só vítima, pratica um só crime do art. 213 do CP.
A Lei n.° 12.015/2009, ao revogar o art. 214 do CP, não promoveu a descriminalização do atentado violento ao puder (não houve abolitio criminis). Ocorreu, no caso, a continuidade normativo-típica, considerando que a nova Lei inseriu a mesma conduta no art. 213. Houve, então, apenas uma mudança no local onde o delito era previsto, mantendo-se, contudo, a previsão de que essa conduta se trata de crime.
É possível aplicar retroativamente a Lei n.° 12.015/2009 para o agente que praticou estupro e atentado violento ao pudor, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, e que havia sido condenado pelos dois crimes (arts. 213 e 214) em concurso.  Segundo entende o STJ, como a Lei n.° 12.015/2009 unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo tipo penal, deve ser reconhecida a existência de crime único na conduta do agente, caso as condutas tenham sido praticadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto fático, devendo-se aplicar essa orientação aos delitos cometidos antes da vigência da Lei n.° 12.015/2009, em face do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1262650/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, j. em 05/08/2014.
STJ. 6ª Turma. HC 212.305-DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Des. Conv. TJ/SE), j. em 24/4/2014 (Info 543).



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