quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Ação civil pública determinando que o Estado construa novo presídio
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Imagine a seguinte situação adaptada:
O Ministério Público constatou inúmeras
irregularidades na cadeia pública da cidade, tais como superlotação, celas sem
condições mínimas de salubridade, desrespeito à integridade física e moral dos
detentos etc.
Diante disso, o Promotor de Justiça
propôs uma ação civil pública pedindo que o Estado:
1) inclua, no projeto de lei
orçamentária, previsão orçamentária suficiente para a reforma da cadeia ou construção
de uma nova unidade prisional;
2) seja condenado, ao final, a reformar
a cadeia ou construir uma nova unidade prisional.
Contestação
Em contestação, a Procuradoria Geral do
Estado refutou o pedido, apresentando três argumentos principais, quais sejam:
a) o pedido do MP para que o Poder
Judiciário determine ao Estado a realização de obras públicas viola o princípio
da separação dos poderes, considerando ser essa uma decisão discricionária da
administração;
b) o MP não pode fazer essa exigência
porque não há disponibilidade orçamentária, ou seja, previsão no orçamento do
ente estatal para a obra;
c) o pedido viola o princípio da
reserva do possível.
A ACP deve ser julgada procedente?
SIM. Segundo
decidiu o STJ, constatando-se irregularidades em cadeia pública, tais como
superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade, desrespeito à
integridade física e moral dos detentos, deve ser julgada procedente ação civil
publica que objetive obrigar o Estado a adotar providências administrativas e
respectiva previsão orçamentária para reformar a referida cadeia pública ou
construir nova unidade, especialmente quando o réu não comprovar objetivamente
a incapacidade econômico-financeira de fazer frente a essa despesa.
STJ. 2ª
Turma. REsp 1.389.952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Info
543).
Vejamos os fundamentos que amparam o
deferimento do pedido do MP:
Violação a direitos fundamentais
A situação em análise revela clara
violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e à
garantia constitucional de que o Poder Público deverá respeitar a integridade
física e moral do preso (art. 5º, XLIX, da CF/88).
Quando o não desenvolvimento de
políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias
fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder
Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais.
Nesses casos, não é possível que o
Poder Público invoque a discricionariedade administrativa.
Em suma, tanto o STF quanto o STJ reconhecem
que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas
públicas.
Inexistência de ofensa à separação dos
poderes
Não há ofensa ao princípio da separação
dos poderes. Isso porque a concretização dos direitos sociais não pode ficar
condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o
Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa.
Seria distorção pensar que o princípio
da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos
direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos
direitos sociais, igualmente importantes.
Tratando-se de direito essencial,
incluso no conceito de mínimo existencial, não existe empecilho jurídico para
que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos
orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva
da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
Inexistência de ofensa à previa
previsão orçamentária
Não há que se falar em ofensa aos arts.
4º, 6º e 60 da Lei n.° 4.320/64
(que preveem a necessidade de previsão orçamentária para a realização das obras
em apreço), na medida em que o MP pediu, na ação civil pública, que o Estado incluísse
previsão orçamentária para as obras solicitadas. Logo, não se desrespeitou a regra
que determina a previsão orçamentária das obras.
Não aplicação da teoria da reserva do
possível
Não se pode invocar a teoria da reserva
do possível, importada do Direito alemão, como escudo para o Estado se escusar
do cumprimento de suas obrigações prioritárias.
Realmente as limitações orçamentárias
são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso
ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de
forma indiscriminada.
Na verdade, o direito alemão construiu
essa teoria no sentido de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma
prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, na qual o peticionante
atenda aos requisitos objetivos para sua fruição.
De acordo com a jurisprudência da Corte
Constitucional alemã, os direitos sociais prestacionais estão sujeitos à
reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional,
pode esperar da sociedade. Ocorre que não se podem importar preceitos do
direito comparado sem atentar para Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos
já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência
digna. Por esse motivo, o indivíduo não pode exigir do Estado prestações
supérfluas, pois isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a
sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da
reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica.
Todavia, a situação é completamente
diversa nos países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil, onde ainda não
foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida
digna. Nesse caso, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência
minimamente decente não pode ser encarado como sem razão (supérfluo), pois garantir
a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro.
É por isso que o princípio da reserva
do possível não pode ser oposto a um outro princípio, conhecido como princípio
do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que
se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros
projetos se deve investir.
Por esse motivo, não havendo
comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal,
inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de
determinada política pública nos planos orçamentários do ente político.
IMPORTANTE:
Em provas práticas do MP ou da
Defensoria Pública, o candidato, ao preparar uma ação civil pública requerendo
a implementação de alguma política pública, deverá pedir que a verba necessária
para essa medida seja incluída no orçamento estatal a fim de evitar a alegação de
violação aos arts. 4º, 6º e 60 da Lei n.°
4.320/64 (que
preveem a necessidade de previsão orçamentária para a realização das obras em
apreço).
Sintetizando:
Constatando-se inúmeras irregularidades em cadeia pública –
superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade para a permanência de
presos, notadamente em razão de defeitos estruturais, de ausência de
ventilação, de iluminação e de instalações sanitárias adequadas, desrespeito à
integridade física e moral dos detentos, havendo, inclusive, relato de que as
visitas íntimas seriam realizadas dentro das próprias celas e em grupos, e que
existiriam detentas acomodadas improvisadamente –, a alegação de ausência de
previsão orçamentária não impede que seja julgada procedente ação civil publica
que, entre outras medidas, objetive obrigar o Estado a adotar providências
administrativas e respectiva previsão orçamentária para reformar a referida
cadeia pública ou construir nova unidade, mormente quando não houver
comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
STJ. 2ª
Turma. REsp 1.389.952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Info
543).