Imagine a seguinte situação hipotética:
João fez concurso para o cargo de
agente de polícia e foi aprovada nas provas teóricas, tendo sido, contudo,
reprovado no exame físico.
O candidato propôs ação judicial
questionando o teste físico, conseguiu o deferimento de tutela antecipada e,
por força de decisão judicial, foi nomeado e empossado em 2002.
Em 2014, o Tribunal de Justiça entendeu
que o teste físico não tinha nenhum vício. No entanto, manteve João no cargo
com base na teoria do fato consumado, uma vez que ele já exercia a função há
muitos anos.
O que é a Teoria do Fato Consumado?
Segundo esta teoria, as situações
jurídicas consolidadas pelo decurso do tempo, amparadas por decisão judicial,
não devem ser desconstituídas, em razão do princípio da segurança jurídica e da
estabilidade das relações sociais (STJ. REsp 709.934/RJ).
Assim, de acordo com essa posição, se
uma decisão judicial autorizou determinada situação jurídica e, após muitos
anos, constatou-se que tal solução não era acertada, ainda assim não deve ser
desconstituída para que não haja insegurança jurídica.
Em suma, seria uma espécie de
convalidação da situação pelo decurso de longo prazo.
A Teoria do Fato Consumado é admitida
pela jurisprudência no caso de posse em cargo público por força de decisão judicial
provisória? Maria deve continuar no cargo?
NÃO. O STF entende que a posse ou o
exercício em cargo público por força de decisão judicial de caráter provisório
não implica a manutenção, em definitivo, do candidato que não atende a
exigência de prévia aprovação em concurso público (art. 37, II, da CF/88), valor
constitucional que prepondera sobre o interesse individual do candidato, que
não pode invocar, na hipótese, o princípio da proteção da confiança legítima,
pois conhece a precariedade da medida judicial.
STF. Plenário. RE 608482/RN, Rel. Min.
Teori Zavascki, julgado em 7/8/2014 (repercussão geral) (Info 753).
O que é o princípio proteção da
confiança legítima?
Trata-se de um princípio que ganhou
destaque inicialmente na Alemanha, por volta da década de 50.
Segundo esse princípio, os
comportamentos adotados pelo Estado, em virtude da presunção de legitimidade, geram
no particular a confiança de que são atos legais. Logo, o administrado não pode
ser prejudicado caso esse ato seja desfeito (revogado ou anulado) já que, de
boa-fé, acreditou (confiou) que eram legítimos.
O princípio da proteção da confiança
legítima está relacionado com a boa-fé e com o princípio da segurança jurídica.
O princípio proteção da confiança
legítima é adotado pelo STF em algumas situações?
SIM. O STF reconhece o princípio da
confiança legítima, por exemplo, quando, por ato de iniciativa da própria
Administração, decorrente de equivocada interpretação da lei ou dos fatos, o
servidor recebe determinada vantagem patrimonial ou alguma condição jurídica
melhor. Nesses casos, o servidor tinha a legítima confiança de que aquela
vantagem era legítima.
Assim, mesmo que fique, posteriormente,
constatada a ilegitimidade dessa verba, esse servidor não será obrigado a
restituí-la, considerando que a recebeu de boa-fé e exigir que ele devolvesse
violaria o princípio da confiança legítima.
Essas hipóteses, contudo, são
excepcionais e não se tratam da regra geral.
E por que o STF não aplica o princípio da
proteção da confiança legítima para os casos de posse em cargo público por força
de medida judicial provisória posteriormente revogada?
Porque nesses casos a nomeação e a posse
no cargo ocorrem por iniciativa, provocação, requerimento do próprio particular
interessado e contra a vontade da Administração Pública que, inclusive,
contesta o pedido feito na Justiça.
Logo, não há que se falar em legítima
confiança do administrado já que não foi a Administração Pública quem praticou
o ato nem reconheceu o direito.
Em situações envolvendo concurso público
não faz sentido invocar-se o princípio da proteção da confiança legítima, haja
vista que o candidato beneficiado com a decisão não desconhece que o provimento
jurisdicional tem natureza provisória e que pode ser revogado a qualquer
momento, acarretando automático efeito retroativo.
Vale ressaltar, por fim, que a concessão
da tutela antecipada corre por conta e responsabilidade do requerente.
O servidor que teve a sua posse tornada
sem efeito em virtude da revogação da decisão anterior terá que devolver as
verbas recebidas? Em nosso exemplo, João terá que restituir a remuneração que
percebeu ao longo desses anos?
NÃO. Isso porque a remuneração possui
caráter alimentar que, como regra, é irrepetível. Além disso, se fosse exigida
a devolução haveria enriquecimento ilícito por parte do Estado considerando que
o servidor trabalhou durante esse período.
Entendimento do STJ no mesmo sentido
Mesmo antes dessa decisão do STF, o STJ
já possuía inúmeros precedentes afirmando que, se o candidato foi nomeado e
empossado por força de medida judicial precária sem preencher os requisitos
inerentes ao cargo, ele não tem direito de permanecer no cargo, ainda que lá
esteja há muitos anos. Veja:
A jurisprudência, tanto desta Corte
quanto do STF, está firmemente orientada no sentido de rejeitar a invocação da
teoria do fato consumado para consolidar situação constituída por força de
liminar posteriormente cassada, sob pena de perpetuar situação contrária à lei.
STJ. 1ª Turma. AgRg no RMS 42.386/GO,
Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 15/05/2014.
Não há falar em aplicação da teoria do
fato consumado nas hipóteses em que a participação do candidato no concurso foi
autorizada por medida judicial precária. (...)
STJ. 5ª Turma. AgRg nos EDcl no RMS
30.094/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 12/08/2014.
A novidade é que agora o STF
decidiu o tema sob a sistemática da repercussão geral, a tendência é que os
demais Tribunais passem a adequar seus acórdãos a esse entendimento.
SINTETIZANDO:
A posse ou o exercício em cargo público por
força de decisão judicial de caráter provisório não implica a manutenção, em
definitivo, do candidato que não atende a exigência de prévia aprovação em
concurso público (CF, art. 37, II), valor constitucional que prepondera sobre o
interesse individual do candidato, que não pode invocar, na hipótese, o
princípio da proteção da confiança legítima, pois conhece a precariedade da
medida judicial.
Em suma, não se aplica a teoria do fato
consumado para candidatos que assumiram o cargo público por força de decisão
judicial provisória posteriormente revista.
STF. Plenário.
RE 608482/RN, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 7/8/2014 (repercussão geral)
(Info 753).