Olá amigos do Dizer o Direito,
Destaco hoje um tema fundamental sobre Direito Penal envolvendo
estupro.
Para concursos estaduais, penso que esse é um dos assuntos mais
importantes do ano e será cobrado certamente nos concursos da Defensoria
Pública, Magistratura e MP.
Além disso, revela-se de extrema importância prática.
Vamos passo a passo para entender bem a problemática.
Redação original do Código Penal
Na redação original do Código
Penal, havia a previsão tanto do crime de “estupro” (art. 213) como do delito
de “atentado violento ao pudor” (art. 214). A diferença entre eles era a
seguinte:
• Estupro: o agente
constrangia a vítima para obrigá-la a ter conjunção carnal (= coito vaginal).
• Atentado violento ao pudor:
o agente constrangia a vítima para obrigá-la a praticar outros atos libidinosos
diferentes da conjunção carnal. Exs: coito anal, sexo oral etc.
Lei n.° 12.015/2009
A Lei n.° 12.015/09 alterou o panorama
acima explicado e reuniu, em um só tipo penal, as condutas de conjunção carnal
e de outras espécies de ato libidinoso.
Agora tanto faz: se o agente
constrange a vítima (homem ou mulher) a praticar conjunção carnal ou a realizar
qualquer outro ato libidinoso, terá cometido o crime de estupro.
O crime de
atentado violento ao pudor foi transportado para dentro do delito de estupro. Compare:
Redação original
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Depois da Lei
12.015/2009 (atualmente)
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Art. 213. Constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Art. 214. Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se
pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
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Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se
pratique outro ato libidinoso:
Art. 214: foi revogado e a sua
conduta passou a ser descrita no art. 213.
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A Lei n.° 12.015/2009, ao revogar o
art. 214 do CP, realizou uma abolitio criminis e a conduta de praticar atentado violento ao pudor deixou de ser crime?
NÃO, não houve abolitio criminis, mas sim continuidade
normativo-típica, considerando que a Lei n.° 12.015/2009, ao revogar o referido
art. 214, inseriu a mesma conduta no art. 213. Ocorreu, então, apenas uma
mudança no local onde o delito era previsto, mantendo-se, contudo, a previsão
de que essa conduta se trata de crime.
O princípio da continuidade normativa ocorre
“quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no
tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro
dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.”
(Min. Gilson Dipp, em voto proferido no HC 204.416/SP).
Antes da Lei n.° 12.015/2009,
quando o agente praticava, além da conjunção carnal (coito vaginal), outro ato
libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e contra a
mesma vítima, realizava mais de um crime?
SIM. Antes da Lei n.° 12.015/2009, o STF e o STJ entendiam
que, se além da conjunção carnal, o agente praticava outro ato libidinoso
independente (ex: coito anal), deveria responder por estupro (art. 213) e por
atentado violento ao pudor (art. 214) em concurso material (art. 69).
Exceção: se o ato de libidinagem estava
ligado necessariamente com a conjunção carnal (não era independente), esse ato
era classificado como um “prelúdio do coito” (praeludia coiti) e haveria crime único. Ex: estuprador que, para realizar
o coito vaginal, tocou e segurou nas coxas e nádegas da vítima. Esses “toques” eram
considerados como preparação para o coito e, apesar de serem atos libidinosos,
haveria apenas um único crime de estupro (art. 213) consumado.
Após a
Lei n.°
12.015/2009, quando o agente pratica, além da conjunção carnal (coito vaginal),
outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e
contra a mesma vítima, realiza mais de um crime?
Assim que a
Lei n.° 12.015/2009 foi editada
surgiram duas correntes principais sobre o art. 213:
1ª corrente: NÃO
(trata-se de CRIME ÚNICO)
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2ª corrente: SIM
(CONCURSO MATERIAL)
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A nova redação do art. 213 prevê
que é crime constranger alguém a praticar conjunção carnal OU outro ato
libidinoso.
O art. 213 previu alternativas:
o agente pode praticar o crime mediante conjunção carnal ou outros atos
libidinosos.
Se praticar os dois contra a
mesma vítima, no mesmo contexto, é o mesmo crime.
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Para essa posição, não seria possível
reconhecer crime único porque há a prática de condutas diferentes, com modos
de execução distintos.
O objetivo do legislador ao revogar
o art. 214 do CP não foi o de enfraquecer a proteção da dignidade sexual. Se
a intenção fosse tornar crime único, o art. 213 teria previsto apenas a
conduta como sendo constranger alguém a praticar ato libidinoso. No entanto,
o legislador manteve expressas as duas condutas (conjunção carnal ou outros
atos libidinosos).
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Logo, se o agente, no mesmo
contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso contra uma
só vítima, pratica um só crime do art. 213 do CP (crime único).
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Logo, para essa corrente, se o
agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato
libidinoso independente contra uma só vítima, tais condutas configurariam
dois crimes de estupro (art. 213) em concurso material.
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Em suma, para essa 1ª corrente,
o art. 213 do CP é classificado como TIPO MISTO ALTERNATIVO.
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Em suma, para a 2ª corrente, o
art. 213 do CP é TIPO MISTO CUMULATIVO.
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Antes
de prosseguirmos, vamos relembrar o que é tipo misto.
O
tipo penal pode ser dividido em:
• Tipo simples: ocorre
quando o legislador descreve apenas um verbo para tipificar a conduta. Ex: art.
121 (matar alguém).
• Tipo misto: é
aquele no qual o legislador descreve dois ou mais verbos, ou seja, mais de uma
forma de se realizar o fato delituoso. Ex: art. 34 da Lei de Drogas (o agente
pratica o crime se fabricar, adquirir, utilizar etc).
O
tipo misto pode ser alternativo ou cumulativo:
• Tipo misto alternativo: o
legislador descreveu duas ou mais condutas (verbos). Se o sujeito praticar mais
de um verbo, no mesmo contexto fático e contra o mesmo objeto material,
responderá por um único crime, não havendo concurso de crimes nesse caso. Ex:
João adquire, na boca-de-fumo, uma máquina para fazer drogas, transporta-a para
sua casa e lá a utiliza. Responderá uma única vez pelo art. 34 e não por três
crimes em concurso.
• Tipo misto cumulativo: o legislador
descreveu duas ou mais condutas (verbos). Se o sujeito incorrer em mais de um
verbo, irá responder por tantos crimes quantos forem os núcleos praticados. Ex:
art. 242 do CP.
Desse modo, para a 1ª corrente, o
estupro é tipo alternativo; para a 2ª corrente, é tipo cumulativo.
Voltando agora à pergunta que
ficou sem resposta:
Após a
Lei n.°
12.015/2009, quando o agente pratica, além da conjunção carnal (coito vaginal),
outro ato libidinoso independente (ex: coito anal), no mesmo contexto fático e
contra a mesma vítima, realiza mais de um crime?
NÃO. Trata-se
de CRIME ÚNICO. O STJ definiu que o art.
213 do CP, com redação dada pela Lei n.°
12.015/2009 é tipo penal misto ALTERNATIVO.
Logo, se o
agente, no mesmo contexto fático, pratica conjunção carnal e outro ato libidinoso
contra uma só vítima, pratica um só crime do art. 213 do CP.
Vale ressaltar
que havia divergência entre as Turmas do STJ sobre o tema, mas já foi superada,
tendo ambas adotado o entendimento do crime único. Nesse sentido:
STJ. 5ª Turma. AgRg
no REsp 1262650/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 05/08/2014.
STJ. 6ª Turma. HC
212.305/DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Des. Conv. TJ/SE), julgado em 24/04/2014.
Percebe-se, portanto, que, nesse
ponto, a Lei n.°
12.015/2009 acabou sendo mais favorável ao acusado. Diante disso, indaga-se: se
o réu havia sido condenado, antes da Lei n.°
12.015/2009, pelos crimes dos arts. 213 e 214, em concurso material, é possível
aplicar o referido diploma legal retroativamente e, rescindindo a condenação, reconhecer agora
que ele deve permanecer condenado por um só crime?
SIM. É possível aplicar
retroativamente a Lei n.°
12.015/2009 para o agente que praticou estupro e atentado violento ao pudor, no
mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, e que havia sido condenado pelos
dois crimes (arts. 213 e 214) em concurso.
Segundo entende o STJ, como a Lei
n.° 12.015/2009 unificou os
crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo tipo penal, deve ser
reconhecida a existência de crime único na conduta do agente, caso as condutas
tenham sido praticadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto fático,
devendo-se aplicar essa orientação aos delitos cometidos antes da vigência da
Lei n.° 12.015/2009, em face do
princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
STJ. 6ª Turma. HC 212.305-DF,
Rel. Min. Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE), julgado em
24/4/2014 (Info 543).
O fato de o agente ter praticado
coito vaginal e também outro ato libidinoso (exs: coito anal, sexo oral) pode
ser utilizado pelo juiz para aumentar a pena do réu?
SIM. O juiz irá reconhecer que se
trata de crime único, condenando apenas pelo art. 213 do CP com a nova redação
dada pela Lei n.°
12.015/2009. No entanto, na 1ª fase da dosimetria da pena (análise das
circunstâncias judicias do art. 59), o magistrado deverá aumentar a pena-base considerando
que a culpabilidade do agente é mais intensa e as circunstâncias em que o crime
foi praticado são mais reprováveis que o normal já que impuseram à vítima um
nível de sofrimento ainda maior do que aquele que seria necessário para a
consumação do delito. Com efeito, a vítima foi obrigada a realizar dois atos
sexuais diferentes. Isso pode (e deve) ser valorado negativamente pelo
julgador.
É possível reconhecer o crime
único, aplicando retroativamente a Lei n.°
12.015/2009, mesmo que já tenha havido o trânsito em julgado? Nesse caso, como
ficará a pena do condenado?
SIM, é possível, nos termos do
enunciado 611 do STF:
Súmula 611-STF: Transitada
em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação
de lei mais benigna.
Assim, caberá ao Juízo da
Execução proceder a nova dosimetria da pena, reconhecendo que se trata de crime
único por força da Lei n.°
12.0156/2009. Vale lembrar que, nessa nova dosimetria, o magistrado deverá
considerar a pluralidade de condutas como sendo aspecto negativo para o fim de
aumentar a pena-base (culpabilidade e circunstâncias são negativas).
Por fim, uma última observação
importante:
Se o agente pratica conjunção
carnal e outros atos libidinosos contra vítimas
diferentes ou, então, contra uma só vítima, mas em contextos fáticos diferentes
(ex: em dois dias seguidos), haverá continuidade delitiva ou até concurso
material, a depender do caso concreto.
Resumindo:
O estupro (art. 213 do CP), com redação
dada pela Lei n.° 12.015/2009, é tipo penal
misto alternativo. Logo, se o agente, no mesmo contexto fático, pratica
conjunção carnal e outro ato libidinoso contra uma só vítima, pratica um só
crime do art. 213 do CP.
A Lei n.°
12.015/2009, ao revogar o art. 214 do CP, não promoveu a descriminalização do
atentado violento ao puder (não houve abolitio
criminis). Ocorreu, no caso, a continuidade normativo-típica, considerando
que a nova Lei inseriu a mesma conduta no art. 213. Houve, então, apenas uma
mudança no local onde o delito era previsto, mantendo-se, contudo, a previsão
de que essa conduta se trata de crime.
É possível aplicar retroativamente a Lei n.°
12.015/2009 para o agente que praticou estupro e atentado violento ao pudor, no
mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, e que havia sido condenado pelos
dois crimes (arts. 213 e 214) em concurso.
Segundo entende o STJ, como a Lei n.°
12.015/2009 unificou os crimes de estupro e atentado violento ao pudor em um mesmo
tipo penal, deve ser reconhecida a existência de crime único na conduta do
agente, caso as condutas tenham sido praticadas contra a mesma vítima e no
mesmo contexto fático, devendo-se aplicar essa orientação aos delitos cometidos
antes da vigência da Lei n.° 12.015/2009, em face do
princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
STJ.
5ª Turma. AgRg no REsp 1262650/RS, Rel. Min. Regina Helena Costa, j. em
05/08/2014.
STJ.
6ª Turma. HC 212.305-DF, Rel. Min. Marilza Maynard (Des. Conv. TJ/SE), j. em
24/4/2014 (Info 543).