Olá amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada, na semana passada,
mais uma novidade legislativa.
Trata-se da Lei n.° 13.010/2014, que altera o
ECA e estabelece que as crianças e os adolescentes têm o direito de serem
educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou
degradante.
A nova Lei tem sido chamada de “Lei
da Palmada” ou “Lei Menino Bernardo”, em homenagem ao garoto Bernardo Uglione
Boldrini, de 11 anos, que foi morto em abril deste ano, em Três Passos (RS),
figurando como suspeitos do crime o pai e a madrasta da criança.
Vejamos o que dispõe a nova Lei:
Direito de ser educado sem o uso
de castigo físico
A Lei n.° 13.010/2014 prevê que as crianças
e os adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de:
• castigo físico ou
• de tratamento cruel ou
degradante.
Quem deverá respeitar esse
direito?
• os pais
• os integrantes da família
ampliada (exs: padrasto, madrasta);
• os responsáveis (ex: tutor);
• os agentes públicos executores
de medidas socioeducativas (ex: funcionários dos centros de internação);
• qualquer pessoa encarregada de
cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los (exs: babás, professores).
O que é considerado “castigo
físico” para os fins desta Lei?
Castigo físico é a ação de
natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física que cause
na criança ou adolescente:
a) sofrimento físico ou
b) lesão.
Desse modo, a “palmada” dada em
uma criança, mesmo que não cause lesão corporal, poderá ser considerada “castigo
físico” se gerar sofrimento físico. Essa é a inovação da Lei. Isso porque o
castigo físico que gera lesão corporal contra criança e adolescente sempre foi
punido, inclusive com a previsão de crime (arts. 129 e 136 do Código Penal).
Por outro lado, é necessário
dizer que a Lei aprovada não proíbe toda e qualquer palmada nas crianças e
adolescentes. Somente é condenada a palmada que gere sofrimento físico ou
lesão. Se a palmada for leve e não causar sofrimento ou lesão estará fora da incidência
da lei. Sobre esse aspecto, vale ressaltar que o projeto original que tramitou
no Congresso Nacional proibia expressamente toda e qualquer palmada, tendo
havido, portanto, um abrandamento na versão final aprovada.
O que é considerado “tratamento
cruel ou degradante” para os fins desta Lei?
Tratamento cruel ou degradante é aquele
que:
a) humilha,
b) ameaça gravemente ou
c) ridiculariza a criança ou o adolescente.
Perceba, portanto, que a Lei n.° 13.010/2014 proíbe não
apenas “palmadas”, ou seja, castigos físicos. Isso porque a Lei veda também
qualquer forma de tratamento cruel ou degradante, o que pode acontecer mesmo
sem contato físico, como no caso de agressões verbais, privação da criança de algo
que ela goste muito etc.
O que acontece com quem utilizar de
castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como forma de educação contra
a criança ou adolescente?
Os infratores estarão sujeitos,
sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão
aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I - encaminhamento a programa
oficial ou comunitário de proteção à família;
II - encaminhamento a tratamento
psicológico ou psiquiátrico;
III - encaminhamento a cursos ou
programas de orientação;
IV - obrigação de encaminhar a
criança a tratamento especializado;
V - advertência.
As medidas acima previstas serão
aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem
prejuízo de outras providências legais.
A conduta configura crime?
Depende. A Lei n.° 13.010/2014 não prevê
nenhum crime. Não traz nenhuma sanção penal. Esse não era o seu objetivo. No
entanto, a depender do caso concreto, o castigo físico aplicado ou o tratamento
cruel ou degradante empregado poderá configurar algum crime previsto no Código
Penal ou no ECA.
Ex1: se o castigo físico provocar
lesão corporal, haverá punição com base no art. 129, § 9º do CP.
Ex2: o Código Penal também prevê
que é crime “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade,
guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia,
quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a
trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou
disciplina” (art. 136).
Ex3: o art. 232 do ECA tipifica o
delito de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou
vigilância a vexame ou a constrangimento”.
O pai ou mãe agressor poderá
perder o poder familiar por conta dessa conduta?
SIM. A Lei n.° 13.010/2014 não prevê, de
forma expressa, a perda ou suspensão do poder familiar como sanção para o caso
de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante. No entanto, isso é
possível, por meio de decisão judicial, se ficar provado que houve extremo excesso
por parte do pai ou da mãe na imposição da disciplina. O tema é tratado pelo
Código Civil:
Art. 1.638. Perderá por
ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente
o filho;
Políticas públicas
A Lei determina que os entes
federativos deverão elaborar políticas públicas e ações destinadas a coibir o
uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas
não violentas de educação de crianças e de adolescentes.
Para isso, deverão ser adotadas
as seguintes ações:
I - promoção de campanhas educativas;
II - integração de políticas e
ações entre os órgãos responsáveis pela proteção e defesa dos direitos das
crianças e adolescentes (Judiciário, MP, Defensoria, Conselho Tutelar etc.);
III - formação continuada e a
capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social para o enfrentamento
de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente;
IV - incentivo às práticas de
resolução pacífica de conflitos;
V - inclusão, nas políticas
públicas, de ações que visem a estimular alternativas ao uso de castigo físico
ou de tratamento cruel ou degradante no processo educativo;
VI - realização de ações focados
nas famílias em situação de violência.
Obs: as famílias com crianças e
adolescentes com deficiência terão prioridade de atendimento nas ações e
políticas públicas de prevenção e proteção.
A Lei n.° 13.010/2014 representa
uma interferência indevida do Estado nas relações familiares?
NÃO. Essa é a opinião da
esmagadora maioria dos infancistas sobre o tema. Segundo a CF/88, é dever, não
apenas da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à dignidade e
ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de violência, crueldade e
opressão (art. 227).
Veja o que pensam Rossato, Lépore
e Sanches:
“Vale destacar que a maioria dos
especialistas da medicina, psicologia, serviço social e pedagogia entende que a
alteração legislativa é benéfica porque nenhuma forma de castigo física ou
tratamento cruel ou degradante é pressuposto para a educação ou convivência
familiar e comunitária.
Ademais, um castigo físico
considerado moderado ou irrelevante quase sempre acaba sendo o primeiro passo
para a prática de atos violentos de maior intensidade e envergadura,
desembocando em sérios prejuízos físicos e psicológicos às crianças e aos
adolescentes.
(...)
Os argumentos no sentido que o
Estado não pode interferir no seio da família são fundados na ideia tutelar e
da doutrina da situação irregular que vigiam na época do Código Melo de Matos,
de 1927, e do Código de Menores, de 1979, que tomavam a criança como objeto de interesse
dos pais.
Entretanto, com a edição do
Estatuto da Criança e do Adolescente passou a vigorar a doutrina da proteção
integral, segundo a qual crianças e adolescente são sujeitos de direitos em estágio
peculiar de desenvolvimento, credores de todos os direitos fundamentais
previstos aos adultos, além de outras garantias especiais, a exemplo da
diversão e da brincadeira.
Sendo assim, a liberdade, o
respeito e a dignidade de crianças e adolescentes são direitos que devem ser
respeitados por todos, inclusive pais, e o Estado deve se valer de todos os
meios lícitos para garanti-los.
A liberdade de exercício do poder
familiar só pode existir na medida do respeito aos direitos fundamentais de crianças
e adolescentes.” (ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério
Sanches. Estatuto da Criança e do
Adolescente. Comentado artigo por artigo. 6ª ed., São Paulo: RT, 2014, p.
159-160).
O que muda, na prática, com a Lei
n.° 13.010/2014?
Praticamente nada. Os castigos
físicos e o tratamento cruel ou degradante já eram punidos por outras normas
existentes, como o Código Civil, o Código Penal e o próprio ECA. A Lei n.° 13.010/2014, que não
cominou sanções severas aos eventuais infratores, assumiu um caráter mais
pedagógico e programático, lançando as bases para a reflexão e o debate sobre o
tema.
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor