O que é um inquérito policial?
Inquérito policial é...
- um procedimento administrativo
- inquisitorial (sem
contraditório e ampla defesa)
- por meio do qual o Delegado de
Polícia (presidente do IP) faz e/ou determina que se façam
- diversas diligências
(providências) de investigação (oitiva de testemunhas, perícias etc.)
- com o objetivo de coletar
elementos informativos (“provas”)
- que comprovem a materialidade (existência)
e a autoria do crime
- com o objetivo de que o
Ministério Público (ou o querelante) possa oferecer a denúncia ou queixa-crime.
O inquérito policial tem prazo
para ser concluído?
SIM. No Brasil, o inquérito
policial é temporário, ou seja, possui um prazo para ser concluído.
O art. 10 do CPP traz a regra
geral sobre o tempo de duração do IP, mas existem outras leis que disciplinam o
tema para crimes específicos, como o art. 66 da Lei n.° 5.010/66 ou o art. 51, parágrafo
único, da Lei n.° 11.343/2006.
Salvo previsão de lei especial em
sentido contrário, o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias (se o
indiciado estiver preso) ou em 30 dias (se estiver solto). Quando o fato for de
difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, o Delegado de Polícia poderá
requerer a prorrogação do prazo (art. 10, caput e § 3º do CPP).
O que acontece quando o inquérito
policial é concluído?
Quando o Delegado de Polícia termina
o inquérito, ele deverá fazer um relatório sobre todas as diligências que foram
realizadas, juntá-lo nos autos e encaminhar o IP para o juiz que seria
competente para julgar aquele crime que estava sendo investigado. É o que prevê
o § 1º do art. 10 do CPP:
§ 1º A autoridade fará
minucioso relatório do que tiver sido apurado e
enviará autos ao juiz competente.
O que o juiz faz com o IP que
recebeu (sendo crime de ação penal pública)?
Ele determina que seja dada vista
dos autos ao Ministério Público.
Quando receber o IP, o Promotor
de Justiça terá quatro opções:
a) Oferecer denúncia contra a
pessoa suspeita de ter cometido o crime, caso entenda que já há indícios suficientes
de autoria e prova da materialidade;
b) Requerer ao juiz que devolva
os autos ao Delegado de Polícia para que sejam realizadas novas diligências
investigatórias, se entender que ainda não há elementos informativos
suficientes;
c) Requerer ao juiz o arquivamento
do inquérito policial, caso conclua que não há crime ou que não existem
“provas” suficientes, mesmo já tendo sido feitas todas as diligências
investigatórias possíveis;
d) Requerer ao juiz que decline a
competência ou que suscite conflito de competência, caso avalie que o atual
juízo não é competente para apurar o delito investigado.
Não recepção do § 1º do art. 10
do CPP
Os autores mais modernos de
Processo Penal defendem que o § 1º do art. 10 do CPP não foi recepcionado pela
CF/88. Vamos entender um pouco melhor isso.
O inquérito policial é um
procedimento investigatório preliminar, ou seja, que ocorre antes de a questão
ser judicializada. Além disso, as diligências são feitas de forma unilateral
pela autoridade policial, isto é, sem a participação da defesa. Trata-se,
portanto, da versão dos fatos segundo a visão apenas da Polícia e do MP.
Assim, não é o momento adequado
para o julgador ter acesso a esses elementos, considerando que não haverá um contraponto
imediato feito pela defesa (contraditório), havendo risco concreto de o juiz
ser influenciado pela narrativa dos fatos feita pelos órgãos de persecução
penal.
Ademais, adotamos o sistema
acusatório, segundo o qual as funções de acusar, defender e julgar devem ficar
bem separadas, não podendo o magistrado interferir nas diligências
investigatórias, salvo quando elas necessitarem de autorização judicial (reserva
de jurisdição), como é o caso de uma interceptação telefônica, afastamento de
sigilo bancário, decretação de prisão etc.
Qual seria a solução mais
adequada?
A doutrina aponta que o inquérito
policial deveria tramitar, em regra, apenas entre a Polícia e o Ministério
Público e de forma direta, sem o Poder Judiciário como intermediário.
Assim, quando o Delegado
concluísse o IP, em vez de remeter os autos ao juiz, ele deveria enviar o
procedimento diretamente ao Promotor de Justiça/Procurador da República.
De igual modo, se o membro do
Parquet desejasse a realização de outras diligências, ele não precisaria, em
regra, pedir isso ao juiz, bastando que devolvesse à Polícia com essa
requisição.
Essa regra da tramitação direta
somente seria excepcionada quando houvesse pedidos que dependessem do Poder
Judiciário por implicar relativização de direitos fundamentais.
Vale ressaltar que a tramitação
direta, além de ser mais consentânea com a CF/88, revela-se também mais eficiente,
econômica e simples, tendo em vista que a passagem do IP pelo Poder Judiciário
antes de seguir para a Polícia ou de volta para o MP é uma rotina apenas
burocrática, considerando que o juiz não deverá interferir nas diligências
investigatórias do IP. Em geral, na prática forense, observa-se a existência de
um despacho padrão com palavras como “Vista ao MP” (quando o IP chega da
Polícia) ou “Defiro. Encaminhe-se à autoridade policial” (na hipótese em que o
MP requisita novas diligências).
O que alguns Estados e Tribunais fizeram?
Percebendo que o procedimento trazido
pelo CPP estava em contrariedade com o sistema acusatório ou, no mínimo,
desatualizado, alguns Estados e Tribunais passaram a editar leis estaduais e portarias
(respectivamente) prevendo que a tramitação do IP, como regra, deveria ser
feita diretamente entre a Polícia e o MP.
Lei orgânica do MPRJ
A Lei Complementar n.° 106/2003, do Estado do
Rio de Janeiro, foi uma das legislações estaduais que previu a tramitação
direta do IP. Confira:
Art. 35. No exercício de
suas funções, cabe ao Ministério Público:
(...)
IV - receber diretamente
da Polícia Judiciária o inquérito policial, tratando-se de infração de ação
penal pública.
ADI 2886/RJ
A então Governadora do Estado ajuizou
uma ADI contra o dispositivo alegando que seria inconstitucional por violar a
competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22,
I, da CF/88).
Primeira pergunta: esse inciso IV
é, de fato, uma norma sobre direito PROCESSUAL penal?
NÃO. A premissa invocada na ADI
está equivocada. O referido inciso trata sobre a tramitação de inquérito
policial. O IP possui natureza jurídica de procedimento. Logo, esse dispositivo
é uma norma que versa sobre PROCEDIMENTO em matéria processual (não é uma norma
processual).
A competência para legislar sobre
PROCESSO é privativa da União (art. 22, I). No entanto, a competência para
editar normas sobre PROCEDIMENTO é concorrente, conforme prevê o art. 24, XI da
CF/88:
Art. 24. Compete à União,
aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XI - PROCEDIMENTOS em
matéria processual;
Dessa feita, em matéria de
procedimento, cabe à União estabelecer as normas gerais (art. 24, § 1º) e os
Estados têm competência para suplementar, ou seja, complementar (detalhar)
essas normas gerais.
Segunda pergunta: a União editou
normas gerais prevendo o PROCEDIMENTO do inquérito policial?
SIM. As normas procedimentais
sobre o inquérito policial estão previstas principalmente no Código de Processo
Penal. Essas são as normas gerais trazidas pela União conforme autoriza o § 1º do
art. 24 da CF/88.
Logo, agora resta avaliarmos se o
inciso IV do art. 35 da LC estadual n.°
106/2003 está de acordo com as normas gerais (CPP).
Terceira
pergunta: a tramitação direta do IP prevista no inciso IV do art. 35 da LC
106/2003 é compatível com o CPP?
NÃO. O STF entendeu
que esse inciso IV contraria a regra do § 1º do art. 10 do CPP (ADI 2886/RJ,
red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgada em 3/4/2014).
Para o STF, o
Estado-membro tem competência para legislar sobre o tema, ou seja, pode editar
normas sobre o procedimento do IP. No entanto, ao fazê-lo, somente pode
complementar as normas gerais trazidas pelo CPP.
Ocorre que
esse inciso IV da Lei fluminense estabeleceu uma regra contrária à norma
geral editada pela União.
Assim, o
inciso IV é inconstitucional, não por afrontar o art. 22, I, da CF/88, mas sim por
violar o § 1º do art. 24 da Carta Magna.
Frustrando a
doutrina, a maioria dos Ministros do STF concluiu que o § 1º do art. 10 do CPP foi
recepcionado pela CF/88 e que se encontra em vigor.
Desse modo, o
Supremo entendeu que é INCONSTITUCIONAL lei estadual que preveja a tramitação
direta do inquérito policial entre a Polícia e o Ministério Público.
Resolução n.° 063/2009-CJF
Por meio da Resolução n.° 063/2009, o Conselho da
Justiça Federal também determinou a tramitação direta do IP entre a Polícia
Federal e o Ministério Público Federal.
Por força da Resolução, atualmente,
no âmbito da Justiça Federal, se o DPF pede a dilação do prazo para as
investigações ou apresenta o relatório final, o IP não precisa ir para o Juiz
Federal e depois ser remetido ao MPF. O caminho é direto entre a PF e o MPF,
sendo o próprio membro do Parquet quem autoriza a dilação do prazo.
De igual modo, se o Procurador da
República deseja a realização de outras diligências, ele não precisa, em regra,
pedir isso ao juiz, bastando que devolva à PF com essa requisição.
Essa regra da tramitação direta
somente é excepcionada quando há pedidos que dependam do Juiz Federal, como é o
caso de busca e apreensão, interceptação telefônica, quando se tratar de
investigado preso etc.
ADI 4305
A Resolução n.° 063/2009-CJF também foi
impugnada no STF por meio da ADI n.°
4305, ajuizada pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. O
Relator é o Min. Ricardo Lewandowski e não há previsão de julgamento.
Diante desse precedente acima
explicado, existe um risco de que a ADI 4305 seja julgada procedente já que o
STF considerou que o § 1º do art. 10 do CPP ainda é válido.
Existe, no entanto, a possibilidade
de que o Supremo decida de forma diferente. Isso porque o veredicto na ADI
2886/RJ foi construído por apertada maioria e dois Ministros que participaram
da corrente vencedora já estão aposentados (Eros Grau e Carlos Velloso).
Lei alterando o § 1º do art. 10
do CPP
Diante da decisão do STF na ADI 2886/RJ,
revela-se urgente que o Congresso Nacional altere o § 1º do art. 10 do CPP para
prever, como regra, a tramitação direta do IP entre Polícia e Ministério
Público, sendo esse o procedimento mais adequado, célere e eficiente.