Dizer o Direito

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Tramitação direta do inquérito policial entre a Polícia e o Ministério Público



O que é um inquérito policial?
Inquérito policial é...
- um procedimento administrativo
- inquisitorial (sem contraditório e ampla defesa)
- por meio do qual o Delegado de Polícia (presidente do IP) faz e/ou determina que se façam
- diversas diligências (providências) de investigação (oitiva de testemunhas, perícias etc.)
- com o objetivo de coletar elementos informativos (“provas”)
- que comprovem a materialidade (existência) e a autoria do crime
- com o objetivo de que o Ministério Público (ou o querelante) possa oferecer a denúncia ou queixa-crime.

O inquérito policial tem prazo para ser concluído?
SIM. No Brasil, o inquérito policial é temporário, ou seja, possui um prazo para ser concluído.
O art. 10 do CPP traz a regra geral sobre o tempo de duração do IP, mas existem outras leis que disciplinam o tema para crimes específicos, como o art. 66 da Lei n.° 5.010/66 ou o art. 51, parágrafo único, da Lei n.° 11.343/2006.
Salvo previsão de lei especial em sentido contrário, o inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias (se o indiciado estiver preso) ou em 30 dias (se estiver solto). Quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, o Delegado de Polícia poderá requerer a prorrogação do prazo (art. 10, caput e § 3º do CPP).

O que acontece quando o inquérito policial é concluído?
Quando o Delegado de Polícia termina o inquérito, ele deverá fazer um relatório sobre todas as diligências que foram realizadas, juntá-lo nos autos e encaminhar o IP para o juiz que seria competente para julgar aquele crime que estava sendo investigado. É o que prevê o § 1º do art. 10 do CPP:
§ 1º A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.

O que o juiz faz com o IP que recebeu (sendo crime de ação penal pública)?
Ele determina que seja dada vista dos autos ao Ministério Público.
Quando receber o IP, o Promotor de Justiça terá quatro opções:
a) Oferecer denúncia contra a pessoa suspeita de ter cometido o crime, caso entenda que já há indícios suficientes de autoria e prova da materialidade;
b) Requerer ao juiz que devolva os autos ao Delegado de Polícia para que sejam realizadas novas diligências investigatórias, se entender que ainda não há elementos informativos suficientes;
c) Requerer ao juiz o arquivamento do inquérito policial, caso conclua que não há crime ou que não existem “provas” suficientes, mesmo já tendo sido feitas todas as diligências investigatórias possíveis;
d) Requerer ao juiz que decline a competência ou que suscite conflito de competência, caso avalie que o atual juízo não é competente para apurar o delito investigado.

Não recepção do § 1º do art. 10 do CPP
Os autores mais modernos de Processo Penal defendem que o § 1º do art. 10 do CPP não foi recepcionado pela CF/88. Vamos entender um pouco melhor isso.
O inquérito policial é um procedimento investigatório preliminar, ou seja, que ocorre antes de a questão ser judicializada. Além disso, as diligências são feitas de forma unilateral pela autoridade policial, isto é, sem a participação da defesa. Trata-se, portanto, da versão dos fatos segundo a visão apenas da Polícia e do MP.
Assim, não é o momento adequado para o julgador ter acesso a esses elementos, considerando que não haverá um contraponto imediato feito pela defesa (contraditório), havendo risco concreto de o juiz ser influenciado pela narrativa dos fatos feita pelos órgãos de persecução penal.
Ademais, adotamos o sistema acusatório, segundo o qual as funções de acusar, defender e julgar devem ficar bem separadas, não podendo o magistrado interferir nas diligências investigatórias, salvo quando elas necessitarem de autorização judicial (reserva de jurisdição), como é o caso de uma interceptação telefônica, afastamento de sigilo bancário, decretação de prisão etc.

Qual seria a solução mais adequada?
A doutrina aponta que o inquérito policial deveria tramitar, em regra, apenas entre a Polícia e o Ministério Público e de forma direta, sem o Poder Judiciário como intermediário.
Assim, quando o Delegado concluísse o IP, em vez de remeter os autos ao juiz, ele deveria enviar o procedimento diretamente ao Promotor de Justiça/Procurador da República.
De igual modo, se o membro do Parquet desejasse a realização de outras diligências, ele não precisaria, em regra, pedir isso ao juiz, bastando que devolvesse à Polícia com essa requisição.
Essa regra da tramitação direta somente seria excepcionada quando houvesse pedidos que dependessem do Poder Judiciário por implicar relativização de direitos fundamentais.
Vale ressaltar que a tramitação direta, além de ser mais consentânea com a CF/88, revela-se também mais eficiente, econômica e simples, tendo em vista que a passagem do IP pelo Poder Judiciário antes de seguir para a Polícia ou de volta para o MP é uma rotina apenas burocrática, considerando que o juiz não deverá interferir nas diligências investigatórias do IP. Em geral, na prática forense, observa-se a existência de um despacho padrão com palavras como “Vista ao MP” (quando o IP chega da Polícia) ou “Defiro. Encaminhe-se à autoridade policial” (na hipótese em que o MP requisita novas diligências).

O que alguns Estados e Tribunais fizeram?
Percebendo que o procedimento trazido pelo CPP estava em contrariedade com o sistema acusatório ou, no mínimo, desatualizado, alguns Estados e Tribunais passaram a editar leis estaduais e portarias (respectivamente) prevendo que a tramitação do IP, como regra, deveria ser feita diretamente entre a Polícia e o MP.

Lei orgânica do MPRJ
A Lei Complementar n.° 106/2003, do Estado do Rio de Janeiro, foi uma das legislações estaduais que previu a tramitação direta do IP. Confira:
Art. 35. No exercício de suas funções, cabe ao Ministério Público:
(...)
IV - receber diretamente da Polícia Judiciária o inquérito policial, tratando-se de infração de ação penal pública.

ADI 2886/RJ
A então Governadora do Estado ajuizou uma ADI contra o dispositivo alegando que seria inconstitucional por violar a competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, da CF/88).

Primeira pergunta: esse inciso IV é, de fato, uma norma sobre direito PROCESSUAL penal?
NÃO. A premissa invocada na ADI está equivocada. O referido inciso trata sobre a tramitação de inquérito policial. O IP possui natureza jurídica de procedimento. Logo, esse dispositivo é uma norma que versa sobre PROCEDIMENTO em matéria processual (não é uma norma processual).

A competência para legislar sobre PROCESSO é privativa da União (art. 22, I). No entanto, a competência para editar normas sobre PROCEDIMENTO é concorrente, conforme prevê o art. 24, XI da CF/88:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XI - PROCEDIMENTOS em matéria processual;

Dessa feita, em matéria de procedimento, cabe à União estabelecer as normas gerais (art. 24, § 1º) e os Estados têm competência para suplementar, ou seja, complementar (detalhar) essas normas gerais.

Segunda pergunta: a União editou normas gerais prevendo o PROCEDIMENTO do inquérito policial?
SIM. As normas procedimentais sobre o inquérito policial estão previstas principalmente no Código de Processo Penal. Essas são as normas gerais trazidas pela União conforme autoriza o § 1º do art. 24 da CF/88.
Logo, agora resta avaliarmos se o inciso IV do art. 35 da LC estadual n.° 106/2003 está de acordo com as normas gerais (CPP).

Terceira pergunta: a tramitação direta do IP prevista no inciso IV do art. 35 da LC 106/2003 é compatível com o CPP?
NÃO. O STF entendeu que esse inciso IV contraria a regra do § 1º do art. 10 do CPP (ADI 2886/RJ, red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgada em 3/4/2014).
Para o STF, o Estado-membro tem competência para legislar sobre o tema, ou seja, pode editar normas sobre o procedimento do IP. No entanto, ao fazê-lo, somente pode complementar as normas gerais trazidas pelo CPP.
Ocorre que esse inciso IV da Lei fluminense estabeleceu uma regra contrária à norma geral editada pela União.
Assim, o inciso IV é inconstitucional, não por afrontar o art. 22, I, da CF/88, mas sim por violar o § 1º do art. 24 da Carta Magna.
Frustrando a doutrina, a maioria dos Ministros do STF concluiu que o § 1º do art. 10 do CPP foi recepcionado pela CF/88 e que se encontra em vigor.
Desse modo, o Supremo entendeu que é INCONSTITUCIONAL lei estadual que preveja a tramitação direta do inquérito policial entre a Polícia e o Ministério Público.

Resolução n.° 063/2009-CJF
Por meio da Resolução n.° 063/2009, o Conselho da Justiça Federal também determinou a tramitação direta do IP entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.
Por força da Resolução, atualmente, no âmbito da Justiça Federal, se o DPF pede a dilação do prazo para as investigações ou apresenta o relatório final, o IP não precisa ir para o Juiz Federal e depois ser remetido ao MPF. O caminho é direto entre a PF e o MPF, sendo o próprio membro do Parquet quem autoriza a dilação do prazo.
De igual modo, se o Procurador da República deseja a realização de outras diligências, ele não precisa, em regra, pedir isso ao juiz, bastando que devolva à PF com essa requisição.
Essa regra da tramitação direta somente é excepcionada quando há pedidos que dependam do Juiz Federal, como é o caso de busca e apreensão, interceptação telefônica, quando se tratar de investigado preso etc.

ADI 4305
A Resolução n.° 063/2009-CJF também foi impugnada no STF por meio da ADI n.° 4305, ajuizada pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. O Relator é o Min. Ricardo Lewandowski e não há previsão de julgamento.
Diante desse precedente acima explicado, existe um risco de que a ADI 4305 seja julgada procedente já que o STF considerou que o § 1º do art. 10 do CPP ainda é válido.
Existe, no entanto, a possibilidade de que o Supremo decida de forma diferente. Isso porque o veredicto na ADI 2886/RJ foi construído por apertada maioria e dois Ministros que participaram da corrente vencedora já estão aposentados (Eros Grau e Carlos Velloso).

Lei alterando o § 1º do art. 10 do CPP
Diante da decisão do STF na ADI 2886/RJ, revela-se urgente que o Congresso Nacional altere o § 1º do art. 10 do CPP para prever, como regra, a tramitação direta do IP entre Polícia e Ministério Público, sendo esse o procedimento mais adequado, célere e eficiente.


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