Olá amigos do Dizer o Direito,
O julgado que iremos comentar
neste post é sobre processo civil e teve muita repercussão porque a 1ª Turma do
STF, ao reformar decisão do STJ, acolheu a posição defendida pela doutrina há
muitos anos sobre o início do prazo da ação rescisória em caso de recursos
parciais.
Iremos explicar o tema com calma
e por partes, mas queremos que ao final vocês consigam responder a essas duas
perguntas:
Impugnada parcialmente a sentença, os capítulos não impugnados
transitam em julgado desde logo ou deve-se aguardar o julgamento do recurso
quanto ao restante da sentença?
O prazo para a ação rescisória se iniciará para cada capítulo ou
deve-se aguardar que não haja mais a possibilidade de se interpor qualquer
recurso?
Vejamos:
CAPÍTULOS DE SENTENÇA
Elementos da sentença
A sentença é dividida em três
elementos, que o CPC chama de “requisitos”: relatório, fundamentação e
dispositivo.
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das
partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das
principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz
analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz
resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.
No dispositivo existem os
capítulos da sentença
No dispositivo da sentença, o
julgador irá decidir as questões que a ele foram apresentadas para serem
examinadas. Em outras palavras, no dispositivo o magistrado apresentará as
conclusões sobre os pedidos que foram feitos.
Em regra, no dispositivo o
julgador irá decidir mais de uma questão, tendo em vista que as partes fazem
variados pedidos, havendo ainda os temas que o magistrado tem que decidir de
ofício, como a condenação em custas processuais etc.
Essas várias questões decididas
pelo julgador no dispositivo da decisão judicial são chamadas pela doutrina de
“capítulos de sentença”.
Conceito de capítulos de sentença
Quem melhor teorizou sobre isso,
sendo repetido por todos, foi Cândido Rangel Dinamarco. Para o autor, capítulos
de sentença são “as partes em que ideologicamente se decompõe o
decisório de uma sentença ou acórdão, cada uma delas
contendo o julgamento a uma pretensão distinta” (Instituições de direito processual civil. Vol. III. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 200).
Obs: apesar de o nome ser “capítulos
de sentença”, esse mesmo raciocínio vale também para acórdãos, conforme se pode
constatar pelo conceito fornecido por Dinamarco.
Exemplo:
Em uma ação de indenização, o
autor pede a condenação do réu por danos materiais, morais e estéticos. Quanto aos
danos patrimoniais, requereu a condenação por danos emergentes e lucros
cessantes. Na contestação, o requerido invoca a ilegitimidade de parte e refuta
os pedidos formulados.
Repare que, no dispositivo, o
juiz terá que resolver inúmeras questões que lhe foram submetidas. Para cada
uma delas, podemos dizer que haverá um diferente capítulo de sentença.
No caso, teremos, no mínimo, sete
capítulos de sentença: 1) ilegitimidade de parte; 2) danos emergentes; 3)
lucros cessantes; 4) danos morais; 5) danos estéticos; 6) honorários
advocatícios; 7) custas processuais.
AÇÃO RESCISÓRIA
Conceito
Ação rescisória é uma ação que tem por
objetivo desconstituir uma decisão judicial transitada em julgado.
Natureza
jurídica
A ação rescisória é uma espécie de ação
autônoma de impugnação (sucedâneo recursal externo).
Atenção: a ação rescisória NÃO é um
recurso.
O recurso é uma forma de impugnar a
decisão na pendência do processo, enquanto a ação rescisória somente pode ser
proposta quando há trânsito em julgado, ou seja, quando o processo já se
encerrou.
Competência
A ação rescisória é sempre julgada por
um tribunal (nunca por um juiz singular).
Quem julga a rescisória é sempre o
próprio tribunal que proferiu a decisão rescindenda.
Prazo
A ação rescisória possui prazo de dois
anos, contados do trânsito em julgado da decisão.
CPC/Art. 495. O direito de propor ação
rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão.
Imagine agora a seguinte situação
adaptada:
A empresa “ABC” ajuizou uma ação de
indenização contra a empresa “XYZ” cobrando danos emergentes e lucros cessantes.
O juiz julgou procedente o pedido
quanto aos danos emergentes e improcedente no que tange aos lucros cessantes.
Ambas as partes apelaram. A autora
recorreu contra o capítulo sobre os “lucros cessantes” e a ré impugnou o
capítulo dos “danos emergentes”.
O Tribunal manteve integralmente a
sentença.
A empresa/ré não recorreu contra o
acórdão do TJ. Já a empresa/autora apresentou recurso especial impugnando
novamente o capítulo sobre “lucros cessantes”.
Desse modo, houve trânsito em julgado
para a ré em 02/02/2010.
Depois de três anos de tramitação, o STJ
julgou improvido o recurso especial interposto pela autora, mantendo o acórdão.
A autora conformou-se, não apresentou
mais nenhum recurso e, em 03/03/2013, houve o trânsito em julgado para ela.
Ação rescisória proposta pela
empresa/ré
No dia 04/03/2013, a empresa “XYZ”
ajuizou ação rescisória afirmando que a sua condenação em “danos emergentes”
violou literal disposição de lei (art. 485, V, do CPC).
A empresa “XYZ” ajuizou a ação
rescisória dentro do prazo?
NÃO. Houve decadência.
Segundo
decidiu a 1ª Turma do STF, o prazo decadencial da ação rescisória, nos casos de
existência de capítulos autônomos, deve ser contado do trânsito em julgado de
cada decisão (cada capítulo).
STF. 1ª
Turma. RE 666589/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 25/3/2014.
O capítulo sobre “danos emergentes”
transitou em julgado em 02/02/2010, momento em que as partes não mais
discutiram essa decisão. No STJ, o que ficou sendo debatido foi o capítulo
sobre “lucros cessantes”.
Ao ocorrer, em datas diversas, o
trânsito em julgado de capítulos autônomos da sentença ou do acórdão, surge a
viabilidade de ações rescisórias distintas, com fundamentos próprios.
As partes do julgado que resolvem
questões autônomas formam sentenças independentes entre si, passíveis de serem
mantidas ou reformadas sem prejuízo para as demais. Em outras palavras, cada
capítulo de sentença é como se fosse uma sentença independente, apesar de estar
em um mesmo documento. Tanto isso é verdade, que existem os recursos parciais,
ou seja, que impugnam apenas uma parte (um capítulo) do dispositivo.
O Min. Marco Aurélio destacou que o
entendimento acima está contido no Enunciado 514 do STF:
Súmula 514-STF: Admite-se ação
rescisória contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se
tenham esgotado todos os recursos.
Mencionou, ainda, como reforço de
argumentação, que o TST possui igualmente essa posição, conforme se observa
pelo inciso II da sua Súmula n.° 100:
AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA
II - Havendo recurso parcial no
processo principal, o trânsito em julgado dá-se em momentos e em tribunais
diferentes, contando-se o prazo decadencial para a ação
rescisória do trânsito em julgado de cada decisão, salvo se o recurso
tratar de preliminar ou prejudicial que possa tornar insubsistente a decisão
recorrida, hipótese em que flui a decadência, a partir do trânsito em julgado
da decisão que julgar o recurso parcial.
Capítulos de sentença no acordão do
Mensalão
Recentemente, o STF já havia
reconhecido a autonomia substancial dos capítulos de sentença no processo do
Mensalão.
O Plenário decidiu que as penas
impostas aos réus da AP 470 que não foram objeto de embargos infringentes deveriam
ser executadas imediatamente (AP 470 Décima Primeira-QO/MG, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, julgado em 13/11/2013 – Info 728).
Por exemplo: segundo o STF, a parte que
condenou determinado réu ao art. 317 do CP era um capítulo de sentença autônomo
em relação à condenação do art. 288 do CP.
Assim, foi decretado o trânsito em julgado
e determinou-se a executoriedade imediata dos capítulos autônomos do acórdão
condenatório que não foram impugnados por embargos infringentes.
Como a condenação do art. 317 do CP já
é definitiva (não tem possibilidade de ser alterada pelos embargos infringentes),
não havia fundamento legítimo que justificasse o retardamento da execução.
Coisa julgada progressiva
Assim, o
STF admite a coisa julgada progressiva, ou seja, aquela
que vai ocorrendo em momentos distintos porque a sentença foi fragmentada em
partes (capítulos) autônomas.
A coisa
julgada progressiva é aquela que vai se formando ao longo do processo, em razão
de interposição de recursos parciais.
É como se a coisa julgada fosse sendo paulatinamente formada a medida que os capítulos da sentença não são impugnados.
Posição do STJ
O entendimento acima explicado é
aplaudido pela doutrina em peso, que já defendia isso há muito tempo.
O STJ, contudo, possui posição em
sentido contrário, manifestada, inclusive, em um enunciado de jurisprudência:
Súmula 401-STJ: O prazo decadencial da
ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último
pronunciamento judicial.
Vejamos como o STJ vai se comportar a
partir de agora, considerando que a decisão do STF aqui comentada foi proferida
ao reformar um acórdão prolatado pelo Tribunal da Cidadania.
Conclusão
Impugnada
parcialmente a sentença, os capítulos não impugnados transitam em julgado desde
logo ou deve-se aguardar o julgamento do recurso quanto ao restante da sentença?
O
prazo para a ação rescisória se iniciará para cada capítulo ou deve-se aguardar
que não haja mais a possibilidade de se interpor qualquer recurso?
Posição do STJ:
Deve-se
aguardar o julgamento do recurso quanto ao restante da sentença. Somente quando
não for cabível qualquer recurso, terá início o prazo para a ação rescisória.
STF e doutrina:
Os
capítulos não impugnados transitam em julgado desde logo.
O prazo
decadencial da ação rescisória, nos casos de existência de capítulos autônomos,
deve ser contado do trânsito em julgado de cada decisão (cada capítulo).