Dizer o Direito

terça-feira, 20 de maio de 2014

Execução fiscal proposta contra Estado-estrangeiro: imunidades tributária, de jurisdição e de execução



Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje simular um interessantíssimo caso concreto que pode ser cobrado em sua prova discursiva ou prática.

Imagine a seguinte situação adaptada:
A República da Argentina possui um prédio no Rio de Janeiro onde funciona a sede do consulado.
O Município do RJ notificou o consulado para pagar o IPTU e a taxa de coleta domiciliar de lixo, tendo, no entanto, este se quedado inerte.
A Procuradoria do RJ ajuizou execução fiscal contra a Argentina.
O juiz, sem determinar a citação da Argentina, extinguiu a execução de plano, afirmando que aquele país possui imunidade de execução.

Diante disso, indaga-se:
1) Onde foi proposta essa execução fiscal?
2) Qual é o recurso cabível contra essa sentença do juiz? Quem será competente para julgá-lo?
3) A executada goza de imunidade tributária?
4) A Argentina goza de imunidade de jurisdição e de execução? A decisão do magistrado foi acertada?

Vejamos as respostas:

1) COMPETÊNCIA
A execução foi proposta na Justiça Federal de 1ª instância do Rio de Janeiro. Isso porque as ações judiciais (inclusive as de execução) intentadas por Município contra Estado estrangeiro (e vice-versa) são julgadas pelo juiz federal de 1ª instância, conforme prevê o art. 109, II, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País;

Duas observações:
• Apesar de esse inciso II não fazer esta ressalva, se a lide versar sobre relação de trabalho, a competência será da Justiça do Trabalho (e não da Justiça Federal comum), por força do art. 114, I, da CF/88. É o caso, por exemplo, de uma reclamação trabalhista proposta por uma pessoa residente em Brasília e que trabalhava na Embaixada da Colômbia.
• Quem julga as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Território? Trata-se de competência do STF, nos termos do art. 102, I, e, da CF/88.

2) RECURSO
O recurso cabível contra essa sentença do juiz federal é o recurso ordinário constitucional, interposto diretamente no STJ.
Trata-se de peculiar caso em que o recurso contra a decisão do juiz federal não passará pelo TRF. É o que determina o art. 105, II, “c”, da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
II - julgar, em recurso ordinário:
c) as causas em que forem partes Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no País;

3) IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E ESTADOS ESTRANGEIROS

Os Estados estrangeiros pagam impostos e taxas no Brasil?
Em regra NÃO. Os Estados estrangeiros gozam de “imunidade tributária”. Isso está previsto no:
• art. 23 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas assinada em 1961 (Decreto 56.435/65); e no
• art. 32 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares assinada em 1963 (Decreto 61.078/67).

Assim o Município do Rio de Janeiro não poderia cobrar IPTU do Estado estrangeiro.

Vale ressaltar que alguns julgados do STJ falam que essa prerrogativa seria uma “imunidade tributária”. No texto das Convenções, contudo, a terminologia utilizada, de forma mais correta, é “isenção fiscal”.

Existe alguma exceção?
SIM. A imunidade não abrange taxas que são cobradas por conta de serviços individualizados e específicos que sejam prestados ao Estado estrangeiro. Sendo esse o caso, o país estrangeirob terá que pagar o valor da taxa, não gozando de isenção.

Ex: o Estado estrangeiro terá que pagar a chamada “taxa de coleta domiciliar de lixo”, uma vez que decorre da prestação de um serviço específico prestado a ele.

Veja, a título de curiosidade (não precisa decorar), o texto das Convenções:

Artigo 23
1. O Estado acreditante e o Chefe da Missão estão isentos de todos os impostos e taxas, nacionais, regionais ou municipais, sôbre os locais da Missão de que sejam proprietários ou inquilinos, excetuados os que representem o pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados.
2. A isenção fiscal a que se refere êste artigo não se aplica aos impostos e taxas cujo pagamento, na conformidade da legislação do Estado acreditado, incumbir as pessoas que contratem com o Estado acreditante ou com o Chefe da Missão.

Artigo 32
Isenção fiscal dos locais consulares
1. Os locais consulares e a residência do chefe da repartição consular de carreira de que fôr proprietário o Estado que envia ou pessoa que atue em seu nome, estarão isentos de quaisquer impostos e taxas nacionais, regionais e municipais, excetuadas as taxas cobradas em pagamento de serviços especificos prestados.
2. A isenção fiscal prevista no parágrafo 1 do presente artigo não se aplica aos mesmos impostos e taxas que, de acôrdo com as leis e regulamentos do Estado receptor, devam ser pagos pela pessoa que contratou com o Estado que envia ou com a pessoa que atue em seu nome.

Logo, no caso concreto, a executada (República da Argentina) gozava de isenção quanto ao IPTU, mas não no que se refere à taxa de lixo.

4) IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
Imunidade de jurisdição é a impossibilidade de que Estados estrangeiros, organizações internacionais e órgãos de Estados estrangeiros sejam julgados por outros Estados contra a sua vontade (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 166).

Teorias sobre a imunidade de jurisdição

Existem duas teorias principais sobre a imunidade de jurisdição:

a) Teoria clássica: imunidade absoluta
Para esta teoria, o Estado estrangeiro goza de imunidade total e absoluta, somente podendo ser julgado por outro Estado caso renuncie a imunidade.
O Estado estrangeiro não poderia ser julgado pelas autoridades de outro Estado contra a sua vontade porque não haveria superioridade de um Estado sobre o outro. Logo, o Estado somente poderia se submeter ao julgamento de outro se consentisse com isso. Baseia-se no princípio de que “iguais não podem julgar iguais” (par in parem non habet jurisdictionem).
Foi a teoria que prevaleceu até os anos 60.

b) Teoria moderna: atos de império e atos de gestão
Com o passar dos anos, as relações entre os Estados, principalmente comerciais, foram se tornando mais frequentes e intensas. Esse fato fez com que a teoria clássica passasse a ser questionada. Diante disso, foi idealizada a chamada teoria dos atos de império e atos de gestão, que preconiza o seguinte:

Atos de império (jure imperii)
Atos de gestão (jure gestionis)
Atos que o Estado pratica no exercício de sua soberania.

Atos que o Estado pratica como se fosse um particular. Não têm relação direta com sua soberania.
Exs: atos de guerra, negativa de visto, negativa de asilo político.
Ex: contrato de luz/água, contrato de compra e venda, contratação de empregados, acidente de veículo.
Quando o Estado estrangeiro pratica atos de império, ele desfruta de imunidade de jurisdição.
Quando o Estado estrangeiro pratica atos de gestão, ele NÃO goza de imunidade de jurisdição.

Esta teoria (moderna) é a que prevalece atualmente, em especial no STJ.

IMUNIDADE DE EXECUÇÃO
Imunidade de execução é a garantia de que os bens dos Estados estrangeiros não serão expropriados, isto é, não serão tomados à força para pagamento de suas dívidas.
Para a posição majoritária, os Estados gozam de imunidade de execução mesmo quando pratiquem atos de gestão.
Assim, para o entendimento prevalente, caso um Estado estrangeiro pratique um ato de gestão, ele poderá ser julgado no Brasil, ou seja, poderá ser réu em um processo de conhecimento (mesmo contra a sua vontade). No entanto, na hipótese de ser condenado, este Estado não poderá ter seus bens executados, salvo se renunciar à imunidade de execução.

“Em resumo, a imunidade de execução do Estado estrangeiro ainda resiste quase absoluta. Em todo caso, podem ser elencadas as seguintes possibilidades de satisfação do débito do ente estatal estrangeiro derrotado em processo judicial:
• pagamento voluntário pelo Estado estrangeiro;
• negociações conduzidas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil e, correlata a esta possibilidade, a solicitação de pagamento pelas vias diplomáticas;
• expedição de carta rogatória ao Estado estrangeiro;
• execução de bens não afetos aos serviços diplomáticos e consulares do Estado estrangeiro, como recursos financeiros vinculados a atividades empresariais disponíveis em contas bancárias;
• renúncia à imunidade de execução pelo Estado estrangeiro.”
 (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 172)

No presente caso, a petição inicial foi extinta de plano, antes mesmo de ter sido dada ciência ao Estado estrangeiro acerca da propositura da demanda, de modo que não lhe fora oportunizada eventual renúncia à jurisdição.

Logo, o STJ decidiu que a decisão do juiz não foi correta, considerando que ele deveria ter determinado a citação da Argentina e esta teria oportunidade de escolher se desejaria ou não ser executada:
• Se ela renunciasse expressamente a imunidade, a execução poderia prosseguir normalmente;
• Se ela invocasse a imunidade ou ficasse silente: a execução deveria ser extinta sem resolução do mérito.

E, então, gostaram da questão? Acertaram antes de ler as respostas?

Julgado no qual essa questão foi inspirada:
STJ. 2ª Turma. RO 138-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 25/2/2014.


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