Olá amigos do Dizer o Direito,
Vamos hoje simular um interessantíssimo
caso concreto que pode ser cobrado em sua prova discursiva ou prática.
Imagine a seguinte situação
adaptada:
A República da Argentina possui
um prédio no Rio de Janeiro onde funciona a sede do consulado.
O Município do RJ notificou o
consulado para pagar o IPTU e a taxa de
coleta domiciliar de lixo, tendo, no entanto, este se quedado inerte.
A
Procuradoria do RJ ajuizou execução fiscal contra a Argentina.
O
juiz, sem determinar a citação da Argentina, extinguiu a execução de plano,
afirmando que aquele país possui imunidade de execução.
Diante
disso, indaga-se:
1) Onde foi proposta essa execução
fiscal?
2) Qual é o recurso cabível contra
essa sentença do juiz? Quem será competente para julgá-lo?
3) A executada goza de imunidade
tributária?
4) A Argentina goza de imunidade de jurisdição
e de execução? A decisão do magistrado foi acertada?
Vejamos as respostas:
1) COMPETÊNCIA
A execução foi proposta na
Justiça Federal de 1ª instância do Rio de Janeiro. Isso porque as ações
judiciais (inclusive as de execução) intentadas por Município contra Estado
estrangeiro (e vice-versa) são julgadas pelo juiz federal de 1ª instância,
conforme prevê o art. 109, II, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes
federais compete processar e julgar:
II - as causas entre
Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada
ou residente no País;
Duas observações:
• Apesar de esse inciso II não
fazer esta ressalva, se a lide versar sobre relação de trabalho, a competência
será da Justiça do Trabalho (e não da Justiça Federal comum), por força do art.
114, I, da CF/88. É o caso, por exemplo, de uma reclamação trabalhista proposta
por uma pessoa residente em Brasília e que trabalhava na Embaixada da Colômbia.
• Quem julga as causas entre
Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o Estado, o Distrito
Federal ou o Território? Trata-se de competência do STF, nos termos do art.
102, I, e, da CF/88.
2) RECURSO
O recurso cabível contra essa
sentença do juiz federal é o recurso ordinário constitucional, interposto
diretamente no STJ.
Trata-se de peculiar caso em que
o recurso contra a decisão do juiz federal não passará pelo TRF. É o que
determina o art. 105, II, “c”, da CF/88:
Art. 105. Compete ao
Superior Tribunal de Justiça:
II - julgar, em recurso
ordinário:
c) as causas em que forem
partes Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro,
Município ou pessoa residente ou domiciliada no País;
3) IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E ESTADOS ESTRANGEIROS
Os Estados estrangeiros pagam
impostos e taxas no Brasil?
Em regra NÃO. Os Estados
estrangeiros gozam de “imunidade tributária”. Isso está previsto no:
• art. 23 da Convenção de Viena
sobre Relações Diplomáticas assinada em 1961 (Decreto 56.435/65); e no
• art. 32 da Convenção de Viena
sobre Relações Consulares assinada em 1963 (Decreto 61.078/67).
Assim o Município do Rio de
Janeiro não poderia cobrar IPTU do Estado estrangeiro.
Vale ressaltar que alguns
julgados do STJ falam que essa prerrogativa seria uma “imunidade tributária”.
No texto das Convenções, contudo, a terminologia utilizada, de forma mais
correta, é “isenção fiscal”.
Existe alguma exceção?
SIM.
A imunidade não abrange taxas que são cobradas por conta de serviços
individualizados e específicos que sejam prestados ao Estado estrangeiro. Sendo
esse o caso, o país estrangeirob terá que pagar o valor da taxa, não gozando de
isenção.
Ex:
o Estado estrangeiro terá que pagar a chamada “taxa de coleta domiciliar de
lixo”, uma vez que decorre da prestação de um serviço específico prestado a
ele.
Veja, a título de curiosidade
(não precisa decorar), o texto das Convenções:
Artigo 23
1. O Estado acreditante e
o Chefe da Missão estão isentos de todos os impostos e taxas, nacionais,
regionais ou municipais, sôbre os locais da Missão de que sejam proprietários
ou inquilinos, excetuados os que representem o pagamento de
serviços específicos que lhes sejam prestados.
2. A isenção fiscal a que
se refere êste artigo não se aplica aos impostos e taxas cujo pagamento, na
conformidade da legislação do Estado acreditado, incumbir as pessoas que
contratem com o Estado acreditante ou com o Chefe da Missão.
Artigo 32
Isenção fiscal dos locais
consulares
1. Os locais consulares e
a residência do chefe da repartição consular de carreira de que fôr
proprietário o Estado que envia ou pessoa que atue em seu nome, estarão isentos
de quaisquer impostos e taxas nacionais, regionais e municipais, excetuadas as taxas cobradas em pagamento de serviços especificos
prestados.
2. A isenção fiscal
prevista no parágrafo 1 do presente artigo não se aplica aos mesmos impostos e
taxas que, de acôrdo com as leis e regulamentos do Estado receptor, devam ser
pagos pela pessoa que contratou com o Estado que envia ou com a pessoa que atue
em seu nome.
Logo, no caso concreto, a executada
(República da Argentina) gozava de isenção quanto ao IPTU, mas não no que se refere
à taxa de lixo.
4)
IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO
Imunidade de jurisdição é a
impossibilidade de que Estados estrangeiros, organizações internacionais e
órgãos de Estados estrangeiros sejam julgados por outros Estados contra a sua
vontade (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito
internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 166).
Teorias sobre a imunidade de jurisdição
Existem duas teorias principais sobre a
imunidade de jurisdição:
a) Teoria clássica: imunidade absoluta
Para esta teoria, o Estado estrangeiro
goza de imunidade total e absoluta, somente podendo ser julgado por outro
Estado caso renuncie a imunidade.
O Estado estrangeiro não poderia ser
julgado pelas autoridades de outro Estado contra a sua vontade porque não
haveria superioridade de um Estado sobre o outro. Logo, o Estado somente
poderia se submeter ao julgamento de outro se consentisse com isso. Baseia-se
no princípio de que “iguais não podem julgar iguais” (par in parem non habet jurisdictionem).
Foi a teoria que prevaleceu até os anos
60.
b) Teoria moderna: atos de império e
atos de gestão
Com o passar dos anos, as relações
entre os Estados, principalmente comerciais, foram se tornando mais frequentes
e intensas. Esse fato fez com que a teoria clássica passasse a ser questionada.
Diante disso, foi idealizada a chamada teoria dos atos de império e atos de
gestão, que preconiza o seguinte:
Atos de império (jure
imperii)
|
Atos de gestão (jure
gestionis)
|
Atos que o Estado pratica no
exercício de sua soberania.
|
Atos que o Estado pratica como se
fosse um particular. Não têm relação direta com sua soberania.
|
Exs: atos de guerra, negativa de
visto, negativa de asilo político.
|
Ex: contrato de luz/água, contrato de
compra e venda, contratação de empregados, acidente de veículo.
|
Quando o Estado estrangeiro pratica
atos de império, ele desfruta de imunidade de jurisdição.
|
Quando o Estado estrangeiro pratica
atos de gestão, ele NÃO goza de imunidade de jurisdição.
|
Esta teoria (moderna) é a que prevalece
atualmente, em especial no STJ.
IMUNIDADE
DE EXECUÇÃO
Imunidade de execução é a garantia de
que os bens dos Estados estrangeiros não serão expropriados, isto é, não serão
tomados à força para pagamento de suas dívidas.
Para a posição majoritária, os Estados
gozam de imunidade de execução mesmo quando pratiquem atos de gestão.
Assim, para o entendimento prevalente,
caso um Estado estrangeiro pratique um ato de gestão, ele poderá ser julgado no
Brasil, ou seja, poderá ser réu em um processo de conhecimento (mesmo contra a
sua vontade). No entanto, na hipótese de ser condenado, este Estado não poderá
ter seus bens executados, salvo se renunciar à imunidade de execução.
“Em resumo, a imunidade de execução do
Estado estrangeiro ainda resiste quase absoluta. Em todo caso, podem ser
elencadas as seguintes possibilidades de satisfação do débito do ente estatal
estrangeiro derrotado em processo judicial:
• pagamento voluntário pelo Estado
estrangeiro;
• negociações conduzidas pelo
Ministério das Relações Exteriores do Brasil e, correlata a esta possibilidade,
a solicitação de pagamento pelas vias diplomáticas;
• expedição de carta rogatória ao
Estado estrangeiro;
• execução de bens não afetos aos
serviços diplomáticos e consulares do Estado estrangeiro, como recursos
financeiros vinculados a atividades empresariais disponíveis em contas
bancárias;
• renúncia à imunidade de execução pelo
Estado estrangeiro.”
(PORTELA,
Paulo Henrique Gonçalves. Direito
internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 172)
No presente caso, a petição
inicial foi extinta de plano, antes mesmo de ter sido dada ciência ao Estado
estrangeiro acerca da propositura da demanda, de modo que não lhe fora
oportunizada eventual renúncia à jurisdição.
Logo, o STJ decidiu que a decisão
do juiz não foi correta, considerando que ele deveria ter determinado a citação
da Argentina e esta teria oportunidade de escolher se desejaria ou não ser
executada:
• Se ela renunciasse
expressamente a imunidade, a execução poderia prosseguir normalmente;
• Se ela invocasse a imunidade ou
ficasse silente: a execução deveria ser extinta sem resolução do mérito.
E, então, gostaram da questão? Acertaram
antes de ler as respostas?
Julgado no qual essa questão foi inspirada:
STJ.
2ª Turma. RO 138-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 25/2/2014.