Dizer o Direito

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O princípio da autodefesa não autoriza o uso de documento falso nem a atribuição de falsa identidade



A CF/88 estabelece, em seu art. 5º, incisos LV e LXIII:
Art. 5º (...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

No processo penal a ampla defesa abrange:
Defesa técnica: exercida por advogado ou defensor público;
Autodefesa: exercida pelo próprio réu. Por conta da autodefesa, o réu não é obrigado a se auto incriminar.

O Pacto de San José da Costa Rica, que vige em nosso ordenamento jurídico com caráter supralegal, estabelece em seu art. 8º, inciso II, alínea “g”, que “toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.

Por fim, o Código de Processo Penal também preconiza:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Por força desses dispositivos, a doutrina e a jurisprudência entendem que, no interrogatório, tanto na fase policial, como em juízo, o réu poderá:

a) Ficar em silêncio, recusando-se a responder as perguntas sobre os fatos pelos quais ele está sendo acusado.
Obs1: prevalece que o réu não pode negar-se a responder as perguntas relativas à sua qualificação, sendo o direito ao silêncio relativo apenas à segunda parte do interrogatório.
Obs2: o silêncio do interrogado não pode ser interpretado como confissão ficta, devendo ser encarado pelo magistrado como mera ausência de resposta.
Obs3: o direito ao silêncio também é conhecido como nemo tenetur se detegere.

b) Mentir ou faltar com a verdade quanto às perguntas relativas aos fatos
Obs1: diferentemente das testemunhas, o réu não tem o dever de dizer a verdade porque tem o direito constitucional de não se auto incriminar. Logo, o réu, ao ser interrogado e mentir, não responde por falso testemunho (art. 342 do CP).
Obs2: o direito de mentir não permite que impute falsamente o crime a terceira pessoa inocente. Caso isso ocorra responderá por denunciação caluniosa (art. 399, CP).
Obs3: em alguns países, como nos EUA, é crime mentir durante o interrogatório. Ressalte-se que, no direito norte-americano também se garante ao acusado o direito ao silêncio e à não auto incriminação (privilegie against self-incrimination), no entanto, na hipótese de o réu decidir responder as perguntas, não poderá faltar com a verdade. Trata-se do chamado crime de perjúrio.

Limites da autodefesa
A autodefesa é um direito ilimitado?
Não. A autodefesa não é um direito absoluto. Exemplo disso, já consagrado há muito tempo, é o fato de que se o réu, em seu interrogatório, imputar falsamente o crime a pessoa inocente responderá por denunciação caluniosa (art. 399, CP).

Autodefesa e uso de documento falso (art. 304 do CP)
Como expressão do direito a autodefesa, o réu pode apresentar um documento falso para não se prejudicar criminalmente? (Ex: João é parado em uma blitz da PM e, sabendo que havia um mandado de prisão contra si expedido, apresenta a cédula de identidade de seu irmão)
Não. Na hipótese retratada, João poderia ser condenado por uso de documento falso. Esse é o entendimento do STF e STJ:
O fato de o paciente ter apresentado à polícia identidade com sua foto e assinatura, porém com impressão digital de outrem, configura o crime do art. 304 do Código Penal. Havendo adequação entre a conduta e a figura típica concernente ao uso de documento falso, não cabe cogitar de que a atribuição de identidade falsa para esconder antecedentes criminais consubstancia autodefesa.
STF. 2ª Turma. HC 92763, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 12/02/2008.

Autodefesa e falsa identidade (art. 307 do CP)
Inicialmente, cumpre estabelecer a distinção entre falsa identidade e uso de documento falso.

Art. 307 – Falsa identidade
Art. 304 – Uso de documento falso
Consiste na simples atribuição de falsa identidade, sem a utilização de documento falso.
Aqui há obrigatoriamente o uso de documento falso.
Ex: ao ser parado em uma blitz, o agente afirma que seu nome é Pedro Silva, quando, na verdade, ele é João Lima.
Ex: ao ser parado em uma blitz, o agente afirma que seu nome é Pedro Silva e apresenta o RG falsificado com esse nome, quando, na verdade, ele é João Lima.

Assim como no caso do uso de documento falso, também na hipótese de falsa identidade, o STF entende que há crime quando o agente, não se incriminar, atribui a si uma identidade que não é sua. Essa questão já foi, inclusive, analisada pelo Pleno do STF em regime de repercussão geral:
O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes.
STF. Plenário. RE 640139 RG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 22/09/2011.

(...) O Plenário Virtual, ao analisar o RE 640.139/DF, reconheceu a repercussão geral do tema versado nestes autos e, na ocasião, reafirmou a jurisprudência, já consolidada no sentido de que comete o delito tipificado no art. 307 do Código Penal aquele que, conduzido perante a autoridade policial, atribui a si falsa identidade com o intuito de ocultar seus antecedentes.  (...)
STF. 2ª Turma. RE 648223 AgR, Rel.  Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 18/10/2011

Trata-se também da posição do STJ:
É típica a conduta do acusado que, no momento da prisão em flagrante, atribui para si falsa identidade (art. 307 do CP), ainda que em alegada situação de autodefesa. Isso porque a referida conduta não constitui extensão da garantia à ampla defesa, visto tratar-se de conduta típica, por ofensa à fé pública e aos interesses de disciplina social, prejudicial, inclusive, a eventual terceiro cujo nome seja utilizado no falso.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.362.524-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/10/2013 (recurso repetitivo).

Em suma, tanto o STF como o STJ entendem que a alegação de autodefesa não serve para descaracterizar a prática dos delitos do art. 304 ou do art. 307 do CP.



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