Dizer o Direito

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Internação compulsória decretada em ação de interdição civil para pessoa que já cumpriu medida socioeducativa



Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje tratar sobre um tema muito relevante e extremamente polêmico.

Trata-se de um homicídio ocorrido em São Paulo e que causou grande comoção nacional. 

A vítima foi uma jovem estudante e o autor do ato infracional um adolescente.

Quando terminou o prazo de internação da medida socioeducativa (3 anos), discutiu-se se seria possível, de algum modo, mantê-lo segregado considerando que, segundo os laudos psiquiátricos, ele apresentaria uma doença mental e uma agressividade acentuada e, na visão dos peritos, poderia vir a praticar novos crimes.

Vejam abaixo o caso com maiores detalhes e o que foi decidido:

Imagine a seguinte situação adaptada:
João, com 17 anos de idade, praticou estupro e homicídio, tendo recebido, como medida socioeducativa, internação por prazo indeterminado.
Após cumprir a internação por três anos ininterruptos, o juiz decidiu extinguir a internação, conforme determina o art. 121, §§ 3º e 4º do ECA:
Art. 121 (...)
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.

Diante desse cenário e a fim de evitar que João fosse solto, o Ministério Público ajuizou ação civil de interdição em face de João, cumulada com pedido de internação psiquiátrica compulsória.

O juiz concedeu a tutela antecipada e João foi internado em um hospital psiquiátrico.

Atuando em favor de João, a Defensoria Pública impetrou habeas corpus contra essa decisão alegando, dentre outros argumentos, que não há em nosso Direito, nenhum dispositivo legal que autorize a prisão de doente ou deficiente mental em processo civil de interdição.

A questão chegou até o STJ. Vejamos os principais pontos decididos:

É possível a impetração de habeas corpus para questionar internação decretada em ação civil de interdição?
SIM. É cabível a impetração de habeas corpus para reparar suposto constrangimento ilegal à liberdade de locomoção decorrente de decisão proferida por juízo cível que tenha determinado, no âmbito de ação de interdição, internação compulsória.
A hipótese de determinação de internação compulsória, embora em decisão proferida por juízo cível, apresenta-se capaz, ao menos em tese, de configurar constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, justificando, assim, o cabimento do remédio constitucional, nos termos do art. 5º, LXVIII, da CF/88.

O STJ manteve a decisão do juiz que decretou a internação de João?
SIM. Segundo decidiu o STJ, é possível determinar, no âmbito de ação de interdição, a internação compulsória de quem tenha acabado de cumprir medida socioeducativa de internação, desde que comprovado o preenchimento dos requisitos para a aplicação da medida mediante laudo médico circunstanciado, diante da efetiva demonstração da insuficiência dos recursos extra-hospitalares.

Qual o fundamento legal utilizado pelo STJ?
O art. 6º da Lei n.° 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Veja o que diz o dispositivo:
Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

No caso concreto, João foi avaliado por médicos e psicólogos que emitiram laudo indicando que ele deveria ser submetido a tratamento psiquiátrico e psicológico em medida de contenção, por tratar-se de pessoa extremamente perigosa.

A internação psiquiátrica de que trata o art. 6º pode ser decretada em uma ação de interdição?
SIM. A internação do art. 6º da Lei n.° 10.216/2001 tem aplicação no processo civil ou penal, indistintamente, podendo ser decretada em processo de interdição.
A Defensoria Pública argumentava que, ao se admitir que João fosse internado compulsoriamente sem ter cometido crime algum estar-se-ia ressuscitado o sistema do  duplo binário, que, no Direito Penal já foi extirpado pela Reforma de 1984 da Parte Geral do Código Penal. O STJ concordou com a tese?
NÃO. Para o STJ, a decretação da internação compulsória não representa, por vias indiretas e ilícitas, o restabelecimento do sistema do duplo binário, já extinto no Direito Penal. Isso porque o paciente não está sendo internado por força de uma medida de segurança (sanção penal). Em outras palavras, ele não cumpriu pena nem agora está internado por força de medida de segurança. Trata-se simplesmente de uma ordem de internação expedida com fundamento em razões de natureza psiquiátrica, conforme permitido pelo art. 6º, parágrafo único, III, da Lei n.° 10.216/2001.

O que era o sistema do duplo binário?
No sistema do duplo binário, o réu, após cumprir a pena pela prática de um crime, era submetido a uma perícia e, se ainda fosse considerado perigoso, deveria cumprir medida de segurança de internação. Por isso era chamado de “duplo trilho” ou “dupla via” considerando que o réu semi-imputável perigoso cumpria pena e mais a medida de segurança.
O sistema do duplo binário foi extinto com a Lei n.° 7.209/84, que alterou a Parte Geral do Código Penal, dando lugar ao sistema vicariante (ou unitário). Por meio deste sistema, o juiz, ao constatar que o réu é semi-imputável perigoso irá decidir se aplica pena (com causa de diminuição) ou se determina que ele cumpra medida de segurança. Trata-se de uma opção: ou uma ou outra. É o que está previsto no art. 98 do CP.

A internação é o tratamento preferencial no caso de pessoas portadoras de transtornos mentais?
NÃO. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4º). Assim, a internação psiquiátrica somente será realizada quando houver um laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos (art. 6º).

Processos a que se referem essa explicação:
STJ. 3ª Turma. HC 135.271-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 17/12/2013.
STJ. 4ª Turma. HC 169.172-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/12/2013.

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