Olá amigos do Dizer o Direito,
Vamos hoje tratar sobre um interessante
caso envolvendo alguns aspectos da ação negatória de paternidade.
Imagine a seguinte situação:
João namorava Beatriz, quando esta
ficou grávida.
A criança nasceu, recebeu o nome de
André, e João a registrou como sendo seu filho e de Beatriz, tendo esta
garantido que ele era o genitor do menor.
Quatro anos mais tarde, João propôs
ação negatória de paternidade contra André (representado por sua mãe), com
pedido de anulação do registro de nascimento.
Na ação, o autor alegou que sempre teve
dúvidas sobre a paternidade e que, na época da concepção, soube que Beatriz
manteve outros relacionamentos. Afirmou, ainda, que agora percebe que não existe
nenhuma semelhança física entre ele e o réu, o que reforçaria que foi enganado
no momento do registro. Pediu a realização de exame de DNA.
Falecimento de João e procedimento de
habilitação
Logo após ser proposta a ação, e antes
de ser apresentada contestação, o autor faleceu.
Os pais de João pediram a habilitação,
com o objetivo de sucedê-lo no processo (art. 1.055 do CPC).
Contestação do réu
André, representado por sua mãe,
apresentou contestação, alegando:
a) No que se refere à sucessão
processual, aduziu que os pais do autor não podem sucedê-lo no processo,
considerando que se trata de ação de cunho personalíssimo, devendo o feito ser
extinto sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, IX do CPC;
b) Quanto ao mérito, afirmou que,
durante todos esses anos, o autor nunca manifestou que tivesse dúvidas sobre a
paternidade, somente fazendo isso agora porque estava em débito com a pensão
alimentícia.
c) Por fim, sustentou que a filiação
socioafetiva sobrepõe-se à filiação biológica.
Exame de DNA
No dia designado para que fosse feita a
coleta do material genético para o exame de DNA, André e sua mãe não
compareceram, recusando-se em se submeter a essa prova pericial.
Súmula 301 do STJ
Diante da recusa do réu em fazer o
exame de DNA, os pais de João pediram a procedência dos pedidos, presumindo a
inexistência de filiação. Para tanto, invocaram o art. 231 do CC e o raciocínio
da Súmula 301 do STJ aplicável ao caso a
contrario sensu:
Art. 231. Aquele que se nega a
submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa.
Súmula 301-STJ: Em ação investigatória,
a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris
tantum de paternidade.
Um caso semelhante a esse chegou ao STJ
(3ª Turma. REsp 1.272.691-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 5/11/2013).
Vejamos, por partes, o que foi decidido:
O direito de contestar a paternidade é
personalíssimo?
SIM. A legitimidade ordinária ativa da ação
negatória de paternidade compete exclusivamente ao pai registral, por ser ação
de estado, que protege direito personalíssimo e indisponível do genitor (art.
27 do ECA), não comportando sub-rogação dos avós, porquanto direito intransmissível
(STJ 3ª Turma. REsp 1328306/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
14/05/2013).
Em outras palavras, somente o pai
registral tem legitimidade para ajuizar a ação negatória de paternidade. Os
avós registrais da criança não podem propor essa demanda.
Mesmo sendo personalíssimo, os avós do
pai registral podem continuar a ação por ele proposta (sucederem o autor)?
SIM. O direito de contestar a
paternidade é personalíssimo realmente, como vimos acima. No entanto, mesmo
sendo personalíssimo, os avós registrais podem continuar com a ação em caso de
falecimento do pai/autor. Isso porque o pai registral, quando vivo, manifestou
sua vontade ao ajuizar a ação. Em outros termos, ele exerceu seu direito
personalíssimo.
O ingresso dos herdeiros no polo ativo (na
condição de sucessores) não representa o exercício do direito de contestar a
paternidade, mas sim o mero prosseguimento da vontade manifestada pelo titular
do direito.
Portanto, ainda que se trate de direito
personalíssimo, tendo o pai registral concretizado sua intenção de contestar a
paternidade ainda em vida, admite-se a sucessão processual de seus ascendentes,
a fim de dar prosseguimento à ação proposta.
Resumindo:
• Dar
início à ação negatória de paternidade: só quem pode fazer é o pai (herdeiros
do pai não podem);
• Prosseguir
na ação negatória de paternidade já ajuizada pelo pai e que faleceu durante o
processo: os herdeiros podem continuar a demanda como seus sucessores.
A ação negatória de paternidade deve
ser julgada procedente?
NÃO. Isso
porque não é possível ao juiz declarar a nulidade do registro de nascimento com
base, exclusivamente, na alegação de dúvida acerca do vínculo biológico do pai
com o registrado, sem provas robustas da ocorrência de erro escusável quando do
reconhecimento voluntário da paternidade.
Sobre o tema, o Código Civil prevê a
seguinte regra:
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar
estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se
erro ou falsidade do registro.
Segundo a Min. Nancy Andrighi, “o
registro de nascimento tem valor absoluto, independentemente de a filiação ter
se verificado no âmbito do casamento ou fora dele, não se permitindo negar a
paternidade, salvo se consistentes as provas do erro ou falsidade”.
Devido ao valor absoluto do registro, o
erro apto a caracterizar o vício de consentimento deve ser escusável, não se admitindo,
para esse fim, que o erro decorra de simples negligência de quem registrou.
Assim, em processos relacionados ao
direito de filiação, é necessário que o julgador aprecie as controvérsias com
prudência para que o Poder Judiciário não venha a prejudicar a criança pelo
mero capricho de um adulto que, livremente, a tenha reconhecido como filho em
ato público e, posteriormente, por motivo vil, pretenda “livrar-se do peso da
paternidade”.
Se o relacionamento era um namoro
eventual e o autor tinha dúvidas sobre a paternidade, deveria ter exigido,
antes de fazer o registro, um exame de DNA.
Portanto, o mero arrependimento não
pode aniquilar o vínculo de filiação estabelecido, e a presunção de veracidade
e autenticidade do registro de nascimento não pode ceder diante da falta de
provas insofismáveis do vício de consentimento para a desconstituição do
reconhecimento voluntário da paternidade.
O fato de o réu não ter comparecido
para realizar o exame de DNA pode ser utilizado contra ele para que a ação seja
julgada procedente?
NÃO. Em
ação negatória de paternidade, o não comparecimento do filho menor de idade
para submeter-se ao exame de DNA não induz, por si só, presunção de inexistência de paternidade.
A Súmula
301-STJ induz presunção relativa, de modo que a mera recusa à submissão ao
exame não implica automaticamente reconhecimento da paternidade ou seu
afastamento, pois deve ser apreciada em conjunto com os demais elementos
probatórios.
Segundo a Min. Nancy Andrighi, é necessário
que haja uma ponderação mínima para que se evite o uso imoderado de ações
judiciais que têm o potencial de expor a intimidade das pessoas envolvidas e
causar danos irreparáveis nas relações interpessoais.
Nesse contexto, não é ético admitir que
essas ações sejam propostas de maneira impensada ou por motivos espúrios, como
as movidas por sentimentos de revanchismo, por relacionamentos extraconjugais
ou outras espécies de vinganças processuais injustificadas.
Portanto, deve-se fazer uma ponderação
de interesses. Se de um lado, o autor tem o direito à identidade e à verdade
biológica, como direitos da personalidade; de outro, o réu possui direito à
honra e à intimidade. Ambos são direitos fundamentais.
O sistema de provas no processo civil
brasileiro permite que sejam utilizados todos os meios legais e moralmente
legítimos para comprovar a verdade dos fatos. Assim, o exame genético, embora
de grande proveito, não pode ser considerado o único meio de prova da
paternidade, em um verdadeiro processo de sacralização do DNA.
A recusa ao DNA não pode, por si só,
resultar na procedência do pedido formulado em investigação ou negação de
paternidade, pois a prova genética não gera presunção absoluta, cabendo ao
autor comprovar a possibilidade de procedência do pedido por meio de outras
provas. Em outras palavras, além da recusa ao exame, deve haver indícios de que
aquilo que foi alegado é verdadeiro. No caso concreto, verifica-se que o autor,
na petição inicial, não trouxe qualquer evidência ou indício que
caracterizassem dúvida razoável acerca da paternidade, a justificar o
ajuizamento da ação negatória.
Nesse contexto, a interpretação a contrario sensu da Súmula 301 do STJ, de
forma a desconstituir a paternidade devido ao não comparecimento do menor ao
exame genético, atenta contra a diretriz constitucional e preceitos do CC e do
ECA, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro protege, com absoluta
prioridade, a dignidade e a
liberdade da criança e do adolescente, instituindo o princípio do melhor
interesse do menor e seu direito à identidade e desenvolvimento da
personalidade.
Vale ressaltar, ainda, que, no caso
concreto, o não comparecimento do menor ao exame há de ser atribuído à mãe,
visto que é ela a responsável pelos atos do filho de quatro anos.
Mesmo se tivesse sido provada a
ausência de filiação biológica, seria possível manter a paternidade com base na
filiação socioafetiva?
SIM. Segundo
já decidiu o STJ em outra oportunidade, o êxito em ação negatória de
paternidade, consoante os princípios do CC/2002 e da CF/1988, depende da
demonstração, a um só tempo, de dois requisitos:
a)
Inexistência da origem biológica;
b) Não
ter sido construída uma relação socioafetiva entre pai e filho registrais.
Assim, para que a ação negatória de
paternidade seja julgada procedente não basta apenas que o DNA prove que o “pai
registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o
“pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi
construída uma relação socioafetiva entre pai e filho (STJ. 4ª Turma. REsp
1.059.214-RS, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012).