Dizer o Direito

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ação negatória de paternidade: legitimidade, mera dúvida, recusa de DNA e paternidade socioafetiva



Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje tratar sobre um interessante caso envolvendo alguns aspectos da ação negatória de paternidade.

Imagine a seguinte situação:
João namorava Beatriz, quando esta ficou grávida.
A criança nasceu, recebeu o nome de André, e João a registrou como sendo seu filho e de Beatriz, tendo esta garantido que ele era o genitor do menor.
Quatro anos mais tarde, João propôs ação negatória de paternidade contra André (representado por sua mãe), com pedido de anulação do registro de nascimento.
Na ação, o autor alegou que sempre teve dúvidas sobre a paternidade e que, na época da concepção, soube que Beatriz manteve outros relacionamentos. Afirmou, ainda, que agora percebe que não existe nenhuma semelhança física entre ele e o réu, o que reforçaria que foi enganado no momento do registro. Pediu a realização de exame de DNA.

Falecimento de João e procedimento de habilitação
Logo após ser proposta a ação, e antes de ser apresentada contestação, o autor faleceu.
Os pais de João pediram a habilitação, com o objetivo de sucedê-lo no processo (art. 1.055 do CPC).

Contestação do réu
André, representado por sua mãe, apresentou contestação, alegando:
a) No que se refere à sucessão processual, aduziu que os pais do autor não podem sucedê-lo no processo, considerando que se trata de ação de cunho personalíssimo, devendo o feito ser extinto sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, IX do CPC;
b) Quanto ao mérito, afirmou que, durante todos esses anos, o autor nunca manifestou que tivesse dúvidas sobre a paternidade, somente fazendo isso agora porque estava em débito com a pensão alimentícia.
c) Por fim, sustentou que a filiação socioafetiva sobrepõe-se à filiação biológica.

Exame de DNA
No dia designado para que fosse feita a coleta do material genético para o exame de DNA, André e sua mãe não compareceram, recusando-se em se submeter a essa prova pericial.

Súmula 301 do STJ
Diante da recusa do réu em fazer o exame de DNA, os pais de João pediram a procedência dos pedidos, presumindo a inexistência de filiação. Para tanto, invocaram o art. 231 do CC e o raciocínio da Súmula 301 do STJ aplicável ao caso a contrario sensu:

Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa.

Súmula 301-STJ: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.

Um caso semelhante a esse chegou ao STJ (3ª Turma. REsp 1.272.691-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 5/11/2013). Vejamos, por partes, o que foi decidido:

O direito de contestar a paternidade é personalíssimo?
SIM. A legitimidade ordinária ativa da ação negatória de paternidade compete exclusivamente ao pai registral, por ser ação de estado, que protege direito personalíssimo e indisponível do genitor (art. 27 do ECA), não comportando sub-rogação dos avós, porquanto direito intransmissível (STJ 3ª Turma. REsp 1328306/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 14/05/2013).
Em outras palavras, somente o pai registral tem legitimidade para ajuizar a ação negatória de paternidade. Os avós registrais da criança não podem propor essa demanda.

Mesmo sendo personalíssimo, os avós do pai registral podem continuar a ação por ele proposta (sucederem o autor)?
SIM. O direito de contestar a paternidade é personalíssimo realmente, como vimos acima. No entanto, mesmo sendo personalíssimo, os avós registrais podem continuar com a ação em caso de falecimento do pai/autor. Isso porque o pai registral, quando vivo, manifestou sua vontade ao ajuizar a ação. Em outros termos, ele exerceu seu direito personalíssimo.
O ingresso dos herdeiros no polo ativo (na condição de sucessores) não representa o exercício do direito de contestar a paternidade, mas sim o mero prosseguimento da vontade manifestada pelo titular do direito.
Portanto, ainda que se trate de direito personalíssimo, tendo o pai registral concretizado sua intenção de contestar a paternidade ainda em vida, admite-se a sucessão processual de seus ascendentes, a fim de dar prosseguimento à ação proposta.

Resumindo:
• Dar início à ação negatória de paternidade: só quem pode fazer é o pai (herdeiros do pai não podem);
• Prosseguir na ação negatória de paternidade já ajuizada pelo pai e que faleceu durante o processo: os herdeiros podem continuar a demanda como seus sucessores.

A ação negatória de paternidade deve ser julgada procedente?
NÃO. Isso porque não é possível ao juiz declarar a nulidade do registro de nascimento com base, exclusivamente, na alegação de dúvida acerca do vínculo biológico do pai com o registrado, sem provas robustas da ocorrência de erro escusável quando do reconhecimento voluntário da paternidade.

Sobre o tema, o Código Civil prevê a seguinte regra:
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.

Segundo a Min. Nancy Andrighi, “o registro de nascimento tem valor absoluto, independentemente de a filiação ter se verificado no âmbito do casamento ou fora dele, não se permitindo negar a paternidade, salvo se consistentes as provas do erro ou falsidade”.

Devido ao valor absoluto do registro, o erro apto a caracterizar o vício de consentimento deve ser escusável, não se admitindo, para esse fim, que o erro decorra de simples negligência de quem registrou.

Assim, em processos relacionados ao direito de filiação, é necessário que o julgador aprecie as controvérsias com prudência para que o Poder Judiciário não venha a prejudicar a criança pelo mero capricho de um adulto que, livremente, a tenha reconhecido como filho em ato público e, posteriormente, por motivo vil, pretenda “livrar-se do peso da paternidade”.

Se o relacionamento era um namoro eventual e o autor tinha dúvidas sobre a paternidade, deveria ter exigido, antes de fazer o registro, um exame de DNA.

Portanto, o mero arrependimento não pode aniquilar o vínculo de filiação estabelecido, e a presunção de veracidade e autenticidade do registro de nascimento não pode ceder diante da falta de provas insofismáveis do vício de consentimento para a desconstituição do reconhecimento voluntário da paternidade.

O fato de o réu não ter comparecido para realizar o exame de DNA pode ser utilizado contra ele para que a ação seja julgada procedente?
NÃO. Em ação negatória de paternidade, o não comparecimento do filho menor de idade para submeter-se ao exame de DNA não induz, por si só, presunção de inexistência de paternidade.
A Súmula 301-STJ induz presunção relativa, de modo que a mera recusa à submissão ao exame não implica automaticamente reconhecimento da paternidade ou seu afastamento, pois deve ser apreciada em conjunto com os demais elementos probatórios.

Segundo a Min. Nancy Andrighi, é necessário que haja uma ponderação mínima para que se evite o uso imoderado de ações judiciais que têm o potencial de expor a intimidade das pessoas envolvidas e causar danos irreparáveis nas relações interpessoais.

Nesse contexto, não é ético admitir que essas ações sejam propostas de maneira impensada ou por motivos espúrios, como as movidas por sentimentos de revanchismo, por relacionamentos extraconjugais ou outras espécies de vinganças processuais injustificadas.

Portanto, deve-se fazer uma ponderação de interesses. Se de um lado, o autor tem o direito à identidade e à verdade biológica, como direitos da personalidade; de outro, o réu possui direito à honra e à intimidade. Ambos são direitos fundamentais.

O sistema de provas no processo civil brasileiro permite que sejam utilizados todos os meios legais e moralmente legítimos para comprovar a verdade dos fatos. Assim, o exame genético, embora de grande proveito, não pode ser considerado o único meio de prova da paternidade, em um verdadeiro processo de sacralização do DNA.

A recusa ao DNA não pode, por si só, resultar na procedência do pedido formulado em investigação ou negação de paternidade, pois a prova genética não gera presunção absoluta, cabendo ao autor comprovar a possibilidade de procedência do pedido por meio de outras provas. Em outras palavras, além da recusa ao exame, deve haver indícios de que aquilo que foi alegado é verdadeiro. No caso concreto, verifica-se que o autor, na petição inicial, não trouxe qualquer evidência ou indício que caracterizassem dúvida razoável acerca da paternidade, a justificar o ajuizamento da ação negatória.

Nesse contexto, a interpretação a contrario sensu da Súmula 301 do STJ, de forma a desconstituir a paternidade devido ao não comparecimento do menor ao exame genético, atenta contra a diretriz constitucional e preceitos do CC e do ECA, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro protege, com absoluta prioridade, a dignidade e a liberdade da criança e do adolescente, instituindo o princípio do melhor interesse do menor e seu direito à identidade e desenvolvimento da personalidade.

Vale ressaltar, ainda, que, no caso concreto, o não comparecimento do menor ao exame há de ser atribuído à mãe, visto que é ela a responsável pelos atos do filho de quatro anos.

Mesmo se tivesse sido provada a ausência de filiação biológica, seria possível manter a paternidade com base na filiação socioafetiva?
SIM. Segundo já decidiu o STJ em outra oportunidade, o êxito em ação negatória de paternidade, consoante os princípios do CC/2002 e da CF/1988, depende da demonstração, a um só tempo, de dois requisitos:
a) Inexistência da origem biológica;
b) Não ter sido construída uma relação socioafetiva entre pai e filho registrais.

Assim, para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o “pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho (STJ. 4ª Turma. REsp 1.059.214-RS, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012).

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