Dizer o Direito

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A Justiça Federal continua sendo competente para julgar o “crime estadual” quando este estava conexo com “crime federal”, que “desapareceu” no momento da sentença?


Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje tratar sobre quatro problemas envolvendo competência da Justiça Federal e crimes conexos. Trata-se de um tema dificílimo, mas imprescindível aos que desejam ser Juiz Federal ou Procurador da República.

Imagine a seguinte situação envolvendo três crimes:
Crime “A”: de competência da Justiça Estadual.
Crime “B”: também de competência da Justiça Estadual.
Crime “C”: de competência da Justiça Federal.

A Polícia Federal instaurou inquérito policial para apurar a prática do crime “C”, que teria sido cometido por João.
Durante as investigações, foram colhidos indícios de que João teria também praticado o crime “A”.
Após a conclusão do IP, o MPF formou convencimento de que João, de fato, praticou os crimes “A” e “C”.
Para o MPF, a prova do crime “A” auxilia a comprovar o delito “C”.
Desse modo, o Procurador da República entendeu que havia conexão entre os dois crimes.

O que é conexão no processo penal?
No processo penal, a conexão ocorre quando dois ou mais crimes possuem uma relação entre si, o que torna recomendável que tais delitos sejam julgados pelo mesmo juiz ou Tribunal.

Conexão instrumental, probatória ou processual
Existem várias espécies de conexão. Na situação em tela, o MPF entendeu que havia “conexão instrumental, probatória ou processual”, prevista no art. 76, III, do CPP:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Qual é a consequência processual pelo fato de os crimes serem conexos?
Em regra, os crimes conexos devem ser processados e julgados conjuntamente, consoante prevê o art. 79 do CPP. A isso se dá o nome de simultaneus processus.

Mas, nesse caso, um crime é de competência da Justiça Federal e o outro da Justiça Estadual... Não tem problema. Mesmo assim eles deverão ser julgados conjuntamente, ou seja, no mesmo juízo.

E esse julgamento conjunto dos crimes ocorrerá na Justiça Estadual ou Federal?
Justiça Federal. Havendo conexão entre crimes de competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, o julgamento conjunto será na Justiça Federal (Súmula 122-STJ).

Por quê?
Porque a competência da Justiça Federal é prevista na Constituição Federal, sendo taxativa, enquanto que a competência da Justiça estadual é residual. Assim, só será competência da Justiça Estadual quando o crime não for previsto como de competência da Justiça Federal.
Desse modo, havendo um crime da Justiça Federal e outro da Justiça Estadual e devendo ambos serem julgados conjuntamente, a reunião deverá ser feita na Justiça Federal, a fim de que o art. 109 da CF/88 não seja descumprido.
Com exceção de eventuais hipóteses de competência delegada (§ 3º do art. 109 da CF/88), a Justiça Estadual não poderá julgar crimes que se enquadrem nos incisos do art. 109. Em compensação, a Justiça Federal poderá, eventualmente, julgar um delito que, originalmente, era de competência da Justiça Estadual. É o caso, por exemplo, do crime “estadual” conexo ao crime “federal”.

Explicado isso, vamos em frente.

João foi denunciado pelo MPF, acusado de ter praticado o crime “C” em concurso com o delito “A”.
A ação penal foi proposta na Justiça Federal.
O juiz federal recebeu a denúncia, houve toda a tramitação e, no momento em que estava elaborando a sentença, percebeu o seguinte:

1ª) HIPÓTESE:
A conduta praticada pelo réu não se amolda ao crime “C”, mas sim ao delito “B”.
Em outras palavras, o juiz, no momento da sentença, discordou da classificação jurídica proposta pelo MPF e fez uma emendatio libelli (art. 383 do CPP), ou seja, desclassificou a conduta praticada pelo réu do crime “C” (“federal”) para o delito “B” (“estadual”).

Diante disso, a pergunta que surge é a seguinte:
O juiz federal permanecerá sendo competente para a causa e poderá continuar a sentença e julgar o réu pelos crimes “A” e “B”?
NÃO.

Se você for querer responder essa pergunta apenas consultando a legislação irá errar. Isso porque o CPP estabelece o seguinte:
Art. 81. Verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.

A situação narrada enquadra-se exatamente na redação literal do art. 81, que é chamada de perpetuatio jurisdictionis (ou seja, perpetuação da jurisdição).

Ocorre que a doutrina majoritária e a jurisprudência do STF entendem que, nessa hipótese, não poderá ser aplicada a solução dada pelo CPP.

Assim, o juiz federal, ao desclassificar a conduta do delito “C” para o crime “B”, deverá julgar-se incompetente para continuar no exame da causa e declinar a competência para a Justiça Estadual, nos termos do § 2º do art. 383 do CPP.

Por quê?
Entende-se que, se no processo não há mais nenhum crime federal sendo julgado, a causa não poderá mais ser apreciada pela Justiça Federal, sob pena de haver uma violação ao art. 109 da CF/88 que define taxativamente (exaustivamente) os crimes julgados pela Justiça Federal.
Se o juiz federal invocasse o art. 81 do CPP e continuasse a julgar a causa mesmo não havendo mais nenhum crime federal ele estaria acrescentando nova hipótese ao art. 109 da CF/88 com base em uma lei infraconstitucional.
O art. 109 da CF/88 afirma que o juiz federal somente poderá julgar crimes nas hipóteses ali previstas e o art. 81 do CPP não tem força para criar outra situação não descrita no dispositivo constitucional.

Mas o processo já estava no final...
Paciência. A conveniência do processo não pode se sobrepor ao texto constitucional. Como destacou o Min. Teori Zavascki, a norma do art. 81, caput, do CPP, embora busque privilegiar a celeridade, a economia e a efetividade processuais, não possui aptidão para modificar competência absoluta constitucionalmente estabelecida, como é o caso da Justiça Federal (HC 113845/SP).
A prorrogação da competência ofenderia o princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, da CF/88).

Vale ressaltar que, quando o processo for para a Justiça Estadual, o juiz lá poderá ratificar todos os atos já praticados.

Precedente nesse sentido: STF. 2ª Turma. HC 113845/SP, rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 20/8/2013.

Vale ressaltar que o STF reformou decisão do STJ (de 2011) que entendeu de forma diferente e aplicou o art. 81 do CPP. Deve-se considerar, portanto, que o explicado acima é o novo entendimento a ser adotado nas provas de concurso.


2ª) HIPÓTESE:
Imaginemos agora que o juiz, no momento da sentença, percebeu que o crime “C” estava prescrito (causa de extinção da punibilidade).

O juiz federal permanecerá sendo competente para a causa e poderá continuar a sentença e julgar o réu pelo crime “A” (remanescente)?
NÃO. Segundo decidiu o STJ, na hipótese de conexão entre os crimes de descaminho (crime federal) e de receptação (crime, em regra, estadual), em que existiu atração do processamento/julgamento para a Justiça Federal, sobrevindo a extinção da punibilidade do agente pela prática do delito de descaminho, desaparece o interesse da União, devendo haver o deslocamento da competência para a Justiça Estadual (CC 110998/MS, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, Terceira Seção, julgado em 26/05/2010).


3ª) HIPÓTESE:
Vamos dificultar o tema: imagine agora que, no momento da sentença, o juiz percebeu que não havia provas de que o réu praticou o crime “C” e que ele deveria ser absolvido.

Após absolver o réu pelo crime federal, o juiz federal permanecerá sendo competente para a causa e poderá continuar a sentença e condenar o acusado pelo crime “A” (estadual)?
SIM. Isso porque, nesse caso, o juiz federal, na sentença, reafirmou sua competência para julgar o crime “C”, tanto que proferiu uma sentença de mérito. Ora, se ele era competente e julgou o crime federal (“C”), deverá também julgar o crime “A”, que é conexo.

Precedente nesse sentido: STJ 5ª Turma. HC 217.363/SC, Rel. Min. Campos Marques (Desembargador Convocado do TJ/PR), julgado em 04/06/2013.


4ª) HIPÓTESE:
Vamos agora imaginar uma última hipótese:
João, servidor público estadual, foi denunciado por:
• peculato (art. 312 do CP): crime que, em princípio, seria de competência da Justiça Estadual (prque o servidor e os valores apropriados eram do Estado); e
• sonegação fiscal (art. 1º, I, da Lei n. 8.137/90): de competência da Justiça Federal (porque o tributo sonegado – imposto de renda – é de competência da União).

Para a prova do crime de sonegação fiscal será necessário demonstrar, antes de tudo, que João recebeu os valores e, mesmo assim, não os declarou. Assim, será indispensável que se prove a apropriação do dinheiro, que é a elementar do peculato. Portanto, a prova da elementar do peculato (apropriação de dinheiro) irá influir na prova da sonegação fiscal (omitir rendimentos).

Desse modo, como havia conexão probatória, os dois crimes estavam tramitando, no mesmo processo, na Justiça Federal.

João, depois de ajuizada a ação penal, efetuou um parcelamento do débito tributário. Nos crimes tributários materiais (como é o caso do art. 1º, I, da Lei 8.137/90), se praticados antes de 2011, o parcelamento suspende a ação penal mesmo que a denúncia já tenha sido recebida e se, ao final, ocorrer o pagamento integral, extingue-se a punibilidade (maiores detalhes, consulte o Informativo 715 do STF).
Em suma, como João parcelou a dívida tributária, a pretensão punitiva (o direito de punir) quanto ao crime tributário ficou suspenso.

A pergunta, então, é a seguinte: mesmo estando suspensa a ação penal quanto à sonegação fiscal, o juízo federal continuará competente para julgar o peculato?
SIM. Segundo decidiu o STJ, deve ser aplicado, por analogia, o disposto no art. 81 do CPP.
O art. 81 afirma que, mesmo que haja a absolvição do crime federal, a competência para julgar o outro crime estadual conexo continua sendo da Justiça Federal. Logo, por analogia, não há razão para o juiz federal perder a competência para julgar o crime conexo se houve apenas a suspensão da ação penal quanto ao crime federal.
Em outras palavras, segundo o art. 81, ainda que o juiz federal absolvesse o réu quanto ao crime tributário, a Justiça Federal permaneceria sendo competente para apreciar o peculato. Com maior razão, o juiz federal continua sendo competente se a ação penal da sonegação fiscal estiver apenas suspensa.

Precedente nesse sentido: STJ. 3ª Seção. CC 121.022-AC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 10/10/2012.

E, então, entenderam o tema?

Não temos dúvida de que esse assunto será bastante explorado nas provas.

Um grande abraço a todos e até a próxima.


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