Dizer o Direito

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Competência para julgar homicídio cujo ato de execução se deu em uma comarca e a consumação ocorreu em outra localidade



Lugar do crime
No processo penal, a competência territorial é definida pelo lugar do crime.
Em outras palavras, em regra, o juízo competente para conhecer a ação penal é o do lugar em que o crime ocorreu.
Diante disso, torna-se importante responder a seguinte pergunta: onde a legislação considera que o crime ocorreu? O que é o lugar do crime?

Teorias sobre o lugar do crime
O critério para definir onde o crime ocorreu é fixado pela lei.
A legislação do país pode adotar uma das seguintes opções:
a) Teoria da atividade: adota como critério que o lugar do crime é o local onde ocorreu a conduta delituosa, ou seja, onde o sujeito praticou a ação ou a omissão.
b) Teoria do resultado (evento): considera que o lugar do crime é o local onde o delito se consumou (crimes consumados) ou onde foi praticado o último ato de execução (no caso de crimes tentados). Obs: os autores de Direito Penal, por conta da redação do CP, afirmam que, pela teoria do resultado, lugar do crime é o local em que se produziu ou deveria produzir-se o resultado.
c) Teoria da ubiquidade (mista): entende que lugar do crime é tanto o local onde ocorreu a ação ou omissão como também onde se deu o resultado. Em suma, este critério abrange as duas teorias.

Qual foi a teoria adotada pelo Brasil?

Código Penal (reformado em 1984)
Código de Processo Penal (1941)
Teoria da UBIQUIDADE
Art. 6º Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. (Redação dada pela Lei 7.209/84)

Teoria do RESULTADO
Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.


Como compatibilizar os dois dispositivos? O art. 6º do CP revogou o art. 70 do CPP?
NÃO. O art. 6º do CP não revogou o art. 70 do CPP. Os dois dispositivos convivem harmoniosamente.

Em que casos é utilizado o art. 6º do CP?
O art. 6º do CP é uma regra destinada a resolver a competência no caso de crimes envolvendo o território de dois ou mais países. Trata-se, portanto, de uma norma de aplicação da lei penal no espaço.
Assim, a regra do Código Penal foi prevista pelo legislador para definir se o Brasil é competente nos casos de crimes envolvendo territórios de outros países, ou seja, situações de conflito internacional de jurisdição.
Diz-se que o art. 6º do CP resolve a competência nas hipóteses de crime à distância.
Crime à distância (ou de espaço máximo): é o delito que envolve o território de dois países. A execução do crime inicia-se em um país e a sua consumação ocorre em outro. Ex: tráfico de drogas provenientes de Letícia (Colômbia) com destino a Tabatinga (Brasil).
Obs: LFG afirma que existe ainda outra classificação chamada de “crime em trânsito”, que seria o delito que envolveria o território de mais de dois países. Ex: tráfico internacional de drogas envolvendo Letícia (Colômbia), Tabatinga (Brasil) e Santa Rosa (Peru). Esta nomenclatura, contudo, é pouco difundida entre os demais autores e na jurisprudência.

Em que casos é utilizado o art. 70 do CPP?
O art. 70 do CPP é uma regra destinada a resolver crimes envolvendo o território de duas ou mais comarcas (ou duas ou mais seções judiciárias).
Trata-se de uma regra de competência interna (não há discussão envolvendo a jurisdição de outros países).
Assim, a regra do CPP foi prevista pelo legislador para definir qual comarca (se for da Justiça Estadual) ou seção/subseção judiciária (se for da Justiça Federal) será competente em crimes cuja execução iniciou-se em uma cidade e a consumação ocorreu em outra, ambas dentro do Brasil. Resolve conflitos de competência territorial.
Diz-se que o art. 70 do CPP resolve conflitos de competência territorial na hipótese de crimes plurilocais, que são aqueles que envolvem duas ou mais comarcas/seções judiciárias dentro do país.

Vamos, então, comparar novamente as duas previsões:

ART. 6º DO CP
ART. 70, CAPUT, DO CPP
Adotou a teoria da ubiquidade (mista).
Adotou a teoria do resultado.
Lugar do crime é local em que...
• ocorreu a ação ou omissão (no todo ou em parte)
• bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado.
Lugar do crime é o local em que se consumou a infração, ou, no caso de tentativa, o lugar em que for praticado o último ato de execução.
Regra destinada a resolver a competência no caso de crimes envolvendo o território de dois ou mais países (conflito internacional de jurisdição).
Regra destinada a resolver crimes envolvendo o território de duas ou mais comarcas (ou seções judiciárias) apenas dentro do Brasil (conflito interno de competência territorial).
Define o se o Brasil será competente para julgar o fato no caso de crimes à distância.
Define qual o juízo competente no caso de crimes plurilocais.


Competência territorial disciplinada pelo CPP

Regra: a competência territorial será do juízo do lugar em que ocorreu o RESULTADO.
Crime consumado: o juízo competente será o do lugar onde o crime se consumou.
Crime tentado: a competência será do lugar onde foi praticado o último ato de execução.

A doutrina aplaude a escolha da teoria do resultado pelo CPP?
Não. “(...) o local no qual se consuma o crime nem sempre é favorável à produção da prova, se outro tiver sido o lugar da ação ou dos atos de execução. A testemunha ocular da prática de um crime, de modo geral, reside ou tem domicílio naquele local. Assim, se a vítima for deslocada para outra cidade, a fim de receber cuidados médicos, não resta dúvida de que a instrução criminal, e, por isso, a ação penal, deveriam ter curso no local onde se praticou a ação e não onde ocorreu o resultado.” (PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2012, p. 156).

Por conta dessas críticas levantadas pela doutrina, a jurisprudência criou uma verdadeira exceção ao art. 70 do CPP. Veja abaixo:

Exceção: em crimes contra a vida, a competência será determinada pela teoria da ATIVIDADE.
Assim, no caso de crimes contra a vida (dolosos ou culposos), se os atos de execução ocorreram em um lugar e a consumação se deu em outro, a competência para julgar o fato será do local onde foi praticada a conduta (local da execução).

Esse é o entendimento do STJ e do STF:
(...) Nos termos do art. 70 do CPP, a competência para o processamento e julgamento da causa, será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumou a infração.
2. Todavia, a jurisprudência tem admitido exceções a essa regra, nas hipóteses em que o resultado morte ocorrer em lugar diverso daquele onde se iniciaram os atos executórios, determinando-se que a competência poderá ser do local onde os atos foram inicialmente praticados.
3. Tendo em vista a necessidade de se facilitar a apuração dos fatos e a produção de provas, bem como garantir que o processo possa atingir à sua finalidade primordial, qual seja, a busca da verdade real, a competência pode ser fixada no local de início dos atos executórios. (...)
(HC 95.853/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 11/09/2012)

Qual é a razão de se adotar esse entendimento?
Explica Guilherme de Souza Nucci:
“(...) é justamente no local da ação que se encontram as melhores provas (testemunhas, perícia etc.), pouco interessando onde se dá a morte da vítima. Para efeito de condução de uma mais apurada fase probatória, não teria cabimento desprezar-se o foro do lugar onde a ação desenvolveu-se somente para acolher a teoria do resultado. Exemplo de ilogicidade seria o autor ter dado vários tiros ou produzido toda a série de atos executórios para ceifar a vida de alguém em determinada cidade, mas, unicamente pelo fato da vítima ter-se tratado em hospital de Comarca diversa, onde faleceu, deslocar-se o foro competente para esta última. As provas teriam que ser coletadas por precatória, o que empobreceria a formação do convencimento do juiz.” (Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed., São Paulo: RT, 2008, p. 210).

Caso concreto
No caso concreto julgado recentemente pelo STF, a ré foi denunciada pela prática de homicídio culposo por ter deixado de observar dever objetivo de cuidado que lhe competia em razão de sua profissão de médica, agindo de forma negligente durante o pós-operatório de sua paciente, ocasionando-lhe a morte.
A conduta negligente da médica foi praticada em uma determinada cidade e o falecimento da vítima se deu em outra.
O STF considerou que o juízo competente era o do local onde se deu a conduta.
(1ª Turma. RHC 116200/RJ, rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/8/2013).

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