Imagine
a seguinte situação (“baseada em fatos
reais”):
João, servidor público estadual, tinha
à sua disposição, em razão de seu cargo, um veículo pertencente à Administração
Pública, para que pudesse deslocar-se no interesse do serviço.
Ocorre que ele utilizou o referido
automóvel como meio de transporte para realizar encontro sexual com uma
meretriz em um motel da cidade.
Descoberto esse fato, o Ministério
Público denunciou o agente pela prática de peculato-desvio (art. 312, parte
final, do Código Penal):
Peculato
Art. 312. Apropriar-se o funcionário
público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular,
de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou
alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e
multa.
O
juiz deverá receber essa denúncia? O fato narrado é típico?
NÃO. Segundo a doutrina e
jurisprudência majoritárias, é atípico o “uso momentâneo de coisa infungível,
sem a intenção de incorporá-la ao patrimônio pessoal ou de terceiro, seguido da
sua integral restituição a quem de direito.” (MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. São Paulo:
Método, 2011, p. 586).
Vale ressaltar que essa conduta
configuraria, obviamente, improbidade administrativa (art. 9º, IV, da Lei n.° 8.429/92):
Art. 9° Constitui ato de improbidade
administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de
vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função,
emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e
notadamente:
IV - utilizar, em obra ou serviço
particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza,
de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1°
desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros
contratados por essas entidades;
Vamos esquematizar o assunto porque há
mais informações importantes sobre o tema:
Servidor público que utiliza
temporariamente bem público para satisfazer interesse particular, sem a intenção
de se apoderar ou desviar definitivamente a coisa, comete crime?
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Se o bem é infungível e não consumível: NÃO
Ex: é atípica a conduta do servidor
público federal que utilizar carro oficial para levar seu cachorro ao
veterinário.
Ex2: é atípica a conduta do servidor
que usa o computador da repartição para fazer um trabalho escolar.
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Se o bem é fungível ou consumível:
SIM
Ex: haverá fato típico na conduta do
servidor público federal que utilizar dinheiro público para pagar suas contas
pessoais, ainda que restitua integralmente a quantia antes que descubram.
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Exceção:
Se o agente é Prefeito, haverá crime
porque existe expressa previsão legal nesse sentido no art. 1º, II, do
Decreto-Lei n.°
201/67:
Art.
1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao
julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara
dos Vereadores:
II
- utilizar-se,
indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços
públicos;
Assim, o peculato de uso é crime se
tiver sido praticado por Prefeito.
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Ressalte-se que, no exemplo do uso
indevido do veículo oficial, poderá, em tese, a depender do caso concreto, ficar
caracterizado peculato da gasolina gasta no trajeto, caso o consumo seja de
considerável monta, a ponto de transbordar o princípio da insignificância (há
divergência se o princípio da insignificância pode ser aplicado para crimes
contra a Administração Pública).
O STF e o STJ já tiveram oportunidade
de decidir que é atípico o peculato de uso em situações envolvendo a utilização
de veículo oficial para fins particulares:
(...) Analogamente ao furto de uso, o
peculato de uso também não configura ilícito penal, tão-somente administrativo.
Todavia, o peculato desvio é modalidade típica, submetendo o autor do fato à
pena do artigo 312 do Código Penal. (...)
(STJ. 6ª Turma. HC 94.168/MG, Rel. Min.
Jane Silva (Desembargadora Convocada Do TJ/MG), julgado em 01/04/2008)
(...) É indispensável a existência do
elemento subjetivo do tipo para a caracterização do delito de peculato-uso,
consistente na vontade de se apropriar DEFINITIVAMENTE do bem sob sua
guarda.
(...) A concessão, ex officio, da ordem para trancar a ação penal se justifica ante a
atipicidade da conduta. 5. Agravo regimental provido.
(STF. 1ª Turma. HC 108433 AgR, Rel.
Min. Luiz Fux, julgado em 25/06/2013)
Por fim, vale mencionar que tramita no
Congresso Nacional um projeto de lei para tornar típica a conduta do peculato
de uso.