Dizer o Direito

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O chamado "peculato de uso" é crime?



Imagine a seguinte situação (“baseada em fatos reais”):
João, servidor público estadual, tinha à sua disposição, em razão de seu cargo, um veículo pertencente à Administração Pública, para que pudesse deslocar-se no interesse do serviço.
Ocorre que ele utilizou o referido automóvel como meio de transporte para realizar encontro sexual com uma meretriz em um motel da cidade.
Descoberto esse fato, o Ministério Público denunciou o agente pela prática de peculato-desvio (art. 312, parte final, do Código Penal):

Peculato
Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

O juiz deverá receber essa denúncia? O fato narrado é típico?
NÃO. Segundo a doutrina e jurisprudência majoritárias, é atípico o “uso momentâneo de coisa infungível, sem a intenção de incorporá-la ao patrimônio pessoal ou de terceiro, seguido da sua integral restituição a quem de direito.” (MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2011, p. 586).

Vale ressaltar que essa conduta configuraria, obviamente, improbidade administrativa (art. 9º, IV, da Lei n.° 8.429/92):
Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:
IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;

Vamos esquematizar o assunto porque há mais informações importantes sobre o tema:

Servidor público que utiliza temporariamente bem público para satisfazer interesse particular, sem a intenção de se apoderar ou desviar definitivamente a coisa, comete crime?

Se o bem é infungível e não consumível: NÃO

Ex: é atípica a conduta do servidor público federal que utilizar carro oficial para levar seu cachorro ao veterinário.
Ex2: é atípica a conduta do servidor que usa o computador da repartição para fazer um trabalho escolar.


Se o bem é fungível ou consumível:
SIM

Ex: haverá fato típico na conduta do servidor público federal que utilizar dinheiro público para pagar suas contas pessoais, ainda que restitua integralmente a quantia antes que descubram.


Exceção:
Se o agente é Prefeito, haverá crime porque existe expressa previsão legal nesse sentido no art. 1º, II, do Decreto-Lei n.° 201/67:
Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
II - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos;

Assim, o peculato de uso é crime se tiver sido praticado por Prefeito.


Ressalte-se que, no exemplo do uso indevido do veículo oficial, poderá, em tese, a depender do caso concreto, ficar caracterizado peculato da gasolina gasta no trajeto, caso o consumo seja de considerável monta, a ponto de transbordar o princípio da insignificância (há divergência se o princípio da insignificância pode ser aplicado para crimes contra a Administração Pública).

O STF e o STJ já tiveram oportunidade de decidir que é atípico o peculato de uso em situações envolvendo a utilização de veículo oficial para fins particulares:

(...) Analogamente ao furto de uso, o peculato de uso também não configura ilícito penal, tão-somente administrativo. Todavia, o peculato desvio é modalidade típica, submetendo o autor do fato à pena do artigo 312 do Código Penal. (...)
(STJ. 6ª Turma. HC 94.168/MG, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora Convocada Do TJ/MG), julgado em 01/04/2008)

(...) É indispensável a existência do elemento subjetivo do tipo para a caracterização do delito de peculato-uso, consistente na vontade de se apropriar DEFINITIVAMENTE do bem sob sua guarda.
(...) A concessão, ex officio, da ordem para trancar a ação penal se justifica ante a atipicidade da conduta. 5. Agravo regimental provido.
(STF. 1ª Turma. HC 108433 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 25/06/2013)

Por fim, vale mencionar que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para tornar típica a conduta do peculato de uso.

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