Dizer o Direito

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

É possível que o juiz realize a emendatio libelli no momento do recebimento da denúncia ou queixa?




Olá amigos do Dizer o Direito,

Sabemos que estão ansiosos pela publicação dos novos Informativos, mas enquanto isso não ocorre, vamos tratar hoje sobre mais um interessante tema de Direito Processual Penal.

A questão é a seguinte:
Se o magistrado entender que a classificação do crime feita na denúncia ou queixa foi incorreta, ele poderá receber a peça, alterando, contudo, a capitulação jurídica dos fatos?

Vamos por partes:

Oferecimento da denúncia ou queixa (art. 41 do CPP):
O Ministério Público ou o querelante, ao oferecer a denúncia ou a queixa, deverá:
a) Fazer a qualificação do acusado (nome, nacionalidade, estado civil, profissão, endereço);
b) Expor o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias (ex: no dia 10/10/2010, às 10h, na rua 10, do Bairro Parque 10, na cidade de Manaus/AM, o acusado subtraiu para si um relógio, marca X..., de propriedade da vítima X..., agindo com destreza, uma vez que...);
c) Classificar qual foi o crime narrado (ex: diante disso, o denunciado praticou o crime de furto qualificado mediante destreza, delito previsto no art. 155, § 4º, II, do Código Penal);
d) Arrolar testemunhas (se necessário).

Posturas do juiz diante da denúncia ou queixa:
a) REJEITAR a denúncia ou queixa, nos casos do art. 395 do CPP:
Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - for manifestamente inepta;
II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou
III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.

b) RECEBER a denúncia ou queixa caso não se verifique nenhuma das hipóteses do art. 395.

Juiz discorda da classificação do crime
Se o magistrado entender que a classificação do crime feita na denúncia ou queixa foi incorreta, ele poderá receber a peça, alterando, contudo, a capitulação jurídica dos fatos?
(ex: juiz considera que, pela narrativa dos fatos, não houve furto, mas sim roubo).

Regra geral: NÃO, considerando que o momento adequado para isso é na prolação da sentença.

STJ: “havendo erro na correta tipificação dos fatos descritos pelo órgão ministerial, ou dúvida quanto ao exato enquadramento jurídico a eles dado, cumpre ao togado receber a denúncia tal como proposta, para que, no momento que for prolatar a sentença, proceda às correções necessárias.” (RHC 27.628-GO).

STF: “Não é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o
indicar.” (HC 87.324-SP)

Exceção: a doutrina e a jurisprudência têm admitido em determinados casos a correção do enquadramento típico logo no ato de recebimento da denúncia ou queixa, mas somente para beneficiar o réu ou para permitir a correta fixação da competência ou do procedimento a ser adotado.

Ex: MP denuncia o réu por furto qualificado (art. 155, § 4º, II, do CP). O juiz, analisando a denúncia, percebe que, pelos fatos narrados, aquela conduta se amolda ao tipo do estelionato (art. 171, caput, do CP). Nesse caso, o magistrado poderia, ao receber a denúncia, desde já fazer a desclassificação para estelionato, ao invés de aguardar pela sentença, porque isso possibilitará que o acusado tenha direito à suspensão condicional do processo, cabível no caso de estelionato (cuja pena mínima é igual a 1 ano), mas impossível na hipótese de furto qualificado (pena mínima de 2 anos).

Resumindo:
É possível que o juiz, no ato de recebimento da denúncia ou queixa,
altere a classificação jurídica do crime?
Regra geral:
NÃO

O momento adequado para a emendatio libelli é a sentença.
Exceção: será permitida a correção do enquadramento típico logo no ato de recebimento, se for para:
·         para beneficiar o réu; ou
·         para permitir a correta fixação da competência ou do procedimento a ser adotado.
Se for para prejudicar o réu (ex: receber por crime mais grave, com a finalidade de evitar que fosse reconhecida a ocorrência da prescrição do crime pelo qual o MP denunciou o acusado): NÃO é possível porque haveria violação ao princípio dispositivo, desrespeito à titularidade da ação penal e antecipação do julgamento do mérito do processo.

A 5ª Turma do STJ decidiu dessa forma recentemente:
RHC 27.628-GO, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 13/11/2012.


Emendatio e mutatio libelli

Desse modo, em regra, caso o juiz não concorde com a classificação jurídica feita na denúncia ou queixa, ele deverá aguardar a realização de toda a instrução processual e, ao final, na sentença, fazer a desclassificação do crime. A isso dá-se o nome de emendatio libelli. Vamos relembrar as principais características desse instituto e suas diferenças em relação à mutatio libelli:

EMENDATIO LIBELLI
MUTATIO LIBELLI
Quando ocorre
Ocorre quando o juiz, ao condenar ou pronunciar o réu, altera a definição jurídica (a capitulação do tipo penal) do fato narrado na peça acusatória, sem, no entanto, acrescentar qualquer circunstância ou elementar que já não estivesse descrita na denúncia ou queixa.
Quando ocorre
Ocorre quando, no curso da instrução processual, surge prova de alguma elementar ou circunstância que não havia sido narrada expressamente na denúncia ou queixa.
Requisitos
1)      Não é acrescentada nenhuma circunstância ou elementar ao fato que já estava descrito na peça acusatória.

2)      É modificada a tipificação penal.
Requisitos
1)      É acrescentada alguma circunstância ou elementar que não estava descrita originalmente na peça acusatória e cuja prova surgiu durante a instrução.
2)      É modificada a tipificação penal.
Exemplo
O MP narrou, na denúncia, que o réu, valendo-se de fraude eletrônica no sistema da internet banking, retirou dinheiro da conta bancária da vítima, imputando-lhe o crime de estelionato (art. 171 do CP). O juiz, na sentença, afirma que, após a instrução, ficou provado que os fatos ocorreram realmente na forma como narrada pelo MP, mas que, em seu entendimento, isso configura furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP).
Exemplo
O MP narrou, na denúncia, que o réu praticou furto simples (art. 155, caput, do CP). Durante a instrução, os depoimentos revelaram que o acusado utilizou-se de uma chave falsa para entrar na furtada. Com base nessa nova elementar, que surgiu em consequência de prova trazida durante a instrução, verifica-se que é cabível uma nova definição jurídica do fato, mudando o crime de furto simples para furto qualificado (art. 155, § 4º, III, do CP).
Previsão legal
Prevista nos arts. 383, caput, e 418 do CPP:
Art. 383.  O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa (leia-se: mudar a capitulação penal), ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave.
Previsão legal
Prevista no art. 384 do CPP:
Art. 384.  Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.
Procedimento
Se o juiz, na sentença, entender que é o caso de realizar a emendatio libelli, ele poderá decidir diretamente, não sendo necessário que ele abra vista às partes para se manifestar previamente sobre isso.
Tal se justifica porque no processo penal o acusado se defende dos fatos e como os fatos não mudaram, não há qualquer prejuízo ao réu nem violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença.
Procedimento
1)      Se o MP entender ser o caso de mutatio libelli, ele deverá aditar a denúncia ou queixa no prazo máximo de 5 dias após o encerramento da instrução;
2)      Esse aditamento pode ser apresentado oralmente na audiência ou por escrito;
3)      No aditamento, o MP poderá arrolar até 3 testemunhas;
4)      Será ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 dias. Nessa resposta, além de refutar o aditamento, a defesa poderá arrolar até 3 testemunhas;
5)      O juiz decidirá se recebe ou rejeita o aditamento;
6)      Se o aditamento for aceito pelo juiz, será designado dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado e realização de debates e julgamento.

Obs: se o órgão do MP, mesmo surgindo essa elementar ou circunstância, entender que não é caso de aditamento, e o juiz não concordar com essa postura, aplica-se o art. 28 do CPP.
Espécies de ação penal em que é cabível:
• Ação penal pública incondicionada;
• Ação penal pública condicionada;
• Ação penal privada.
Espécies de ação penal em que é cabível:
• Ação penal pública incondicionada;
• Ação penal privada subsidiária da pública.
Obs: somente o MP pode oferecer mutatio.
Emendatio libelli em grau de recurso:
É possível que o tribunal, no julgamento de um recurso contra a sentença, faça emendatio libelli, desde que não ocorra reformatio in pejus (STJ HC 87984 / SC).
Mutatio libelli em grau de recurso:
Não é possível, porque se o Tribunal, em grau de recurso, apreciasse um fato não valorado pelo juiz, haveria supressão de instância.
Nesse sentido é a Súmula 453-STF.

Para maiores informações:
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Vol. II. Niterói : Impetus, 2012.

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