Dizer o Direito

sábado, 22 de setembro de 2012

Boa-fé objetiva no Processo Civil



Olá amigos do Dizer o Direito,

Hoje vamos tratar sobre um tema que vem sendo cobrado a cada dia mais nos concursos públicos, em especial da magistratura federal, e que, apesar disso, não é tratado pela maioria dos manuais de Processo Civil. Trata-se da aplicação da boa-fé objetiva ao Direito Processual Civil.

Antes de falarmos especificamente sobre sua aplicação no processo civil, é importante fixarmos algumas noções gerais sobre a boa-fé objetiva.

BOA-FÉ OBJETIVA

Origem
A teoria da boa-fé objetiva surgiu na Alemanha.

Corolários da boa-fé objetiva
As quatro principais manifestações da boa-fé objetiva são as seguintes:
  • venire contra factum proprium
  • supressio
  • surrectio
  • tu quoque

Vale ressaltar, contudo, que a boa-fé objetiva vai além desses quatro institutos.

Principais diferenças entre boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva
Não se pode confundir boa-fé objetiva com boa-fé subjetiva:
Boa-fé SUBJETIVA
Boa-fé OBJETIVA
Não é um princípio, mas sim um estado psicológico (um fato).

Muito utilizada no Direito Real (exs: posse, usucapião, benfeitorias etc).

É uma regra de conduta.
Significa manter uma conduta de acordo com padrões sociais de lisura, honestidade e correção.
Tem como objetivo não frustrar a legítima confiança da outra parte.
Para examinar a boa-fé subjetiva, deve-se analisar se a pessoa pensava, sinceramente, que agia ou não de acordo com o direito (é examinado se a pessoa tinha boas ou más intenções).
Para examinar a boa-fé objetiva, deve-se analisar se a pessoa agiu de acordo com os padrões de comportamento (standards) impostos pelo direito em determinada localidade e em determinada situação.
Deve ser examinada internamente, ou seja, de acordo com o sentimento da pessoa.
Deve ser examinada externamente, ou seja, não importa qual era o sentimento da pessoa, mas sim a sua conduta.

Aplicação nos ramos do direito
Normalmente, o estudo da boa-fé objetiva é feito no Direito Civil. No entanto, indaga-se:

É possível a aplicação da boa-fé objetiva nos demais ramos do Direito?
SIM. A boa-fé objetiva surgiu inicialmente no Direito Civil, mas a sua aplicação foi expandida para todos os demais ramos do direito, inclusive para os ramos do chamado “direito público”, como é o caso do Direito Administrativo. Assim, por exemplo, de acordo com o STJ, a teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium) é aplicada ao poder público.
Em suma, a boa-fé objetiva deve estar presente em toda e qualquer relação jurídica.

É possível a aplicação da boa-fé objetiva no Processo Civil?
SIM, com certeza.

Um dos melhores autores que trata sobre o princípio da boa-fé processual é Fredie Didier Jr. (Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 13ª ed., 2011, p. 66 e ss), cuja obra serve de fonte de consulta e citação indireta nesta explicação:

O que é o princípio da boa-fé processual:
Significa que os sujeitos do processo devem comportar-se de acordo com a boa-fé, entendida como uma norma de conduta (boa-fé objetiva).
Tem como objetivo não frustrar a legítima confiança da outra parte.
Uma das importantes funções da boa-fé objetiva é impedir que a parte exerça o seu direito de forma abusiva. Por isso, diz-se que a boa-fé objetiva serve como limitação contra os abusos de direito.

Fundamento constitucional:
Os civilistas apontam que o fundamento constitucional está na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).
Os processualistas, em geral, apontam que o fundamento constitucional da boa-fé objetiva está no princípio do devido processo legal. Essa é também a posição do STF: RE 464.963-2/GO.

Previsão legal:
CPC/Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
II - proceder com lealdade e boa-fé;

Esse art. 14, II, do CPC refere-se à boa-fé objetiva ou subjetiva?
1ª corrente: boa-fé subjetiva. Doutrina tradicional.
2ª corrente: boa-fé objetiva. Doutrina contemporânea (ex: Fredie Didier).

Para a doutrina contemporânea, o art. 14, II, do CPC é uma cláusula geral processual que proíbe quaisquer hipóteses de comportamento desleal pelos sujeitos do processo.

O princípio da boa-fé processual é destinado somente às partes?
NÃO. Os destinatários da norma são todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, o que inclui, não apenas as partes, mas também o próprio juiz.

Exemplos de aplicação da boa-fé objetiva no processo civil (exemplos de Didier):
Ex: a parte não pode recorrer contra uma decisão que já havia manifestado sua aceitação (art. 503 do CPC). Isso seria venire contra factum proprium.

Ex2: a parte não pode pedir a invalidação de um ato cujo defeito foi ela própria quem deu causa (art. 243 do CPC). Isso também seria venire contra factum proprium.

Ex3: se o réu exerce seu direito de defesa de forma abusiva, o juiz poderá, como sanção, conceder a tutela antecipada ao autor (art. 273, II, do CPC). O réu, nesse caso, violou a boa-fé objetiva.

Ex4: se a parte interpõe recurso com intuito manifestamente protelatório, significa que violou o princípio da boa-fé processual, podendo ser multada por litigância de má-fé (art. 17, VII, do CPC).

Venire contra factum proprium
A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege a parte contra aquele que pretenda exercer uma conduta em contradição com o comportamento assumido anteriormente.
A proibição do venire contra factum proprium é um dos corolários do princípio da boa-fé objetiva e impede que a pessoa adote posturas contraditórias. Justamente por isso, diz-se que, no âmbito do processo civil, a proibição do venire é um dos fundamentos teóricos que justifica a existência da preclusão lógica. Lembrando que preclusão lógica é a perda de um poder processual em razão da prática de um ato anterior com ele incompatível.

Exemplo de aplicação da boa-fé objetiva em caso julgado recentemente pelo STJ:
Recentemente, o STJ reafirmou a aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao processo civil.
A situação foi, com algumas adaptações, a seguinte:

“X” ajuizou ação contra “Y”.

Antes de ser publicada a sentença, “X” e “Y” combinaram de suspender o processo pelo prazo de 90 dias. Isso é possível? Sim, é possível, com base no art. 265, II, do CPC:
Art. 265.  Suspende-se o processo:
II - pela convenção das partes;
Essa suspensão do processo por convenção das partes nunca poderá exceder 6 (seis) meses (§3º do art. 265).

Ocorre que, no 30º dia em que o processo estava suspenso, o juiz proferiu a sentença. Quando acabou o prazo de 90 dias de suspensão do processo, a parte que foi prejudicada com a sentença ingressou com apelação. O Tribunal, no entanto, considerou que o recurso era intempestivo sob o argumento de que o recurso deveria ter sido interposto mesmo o processo estando suspenso.

A questão chegou até o STJ. O que decidiu a Corte?

Segundo o Relator, Min. Herman Benjamin, o entendimento do TJ foi equivocado.

Antes mesmo de publicada a sentença contra a qual foi interposta a apelação, o juízo de 1° grau já havia homologado requerimento de suspensão do processo pelo prazo de 90 dias.

Em havendo suspensão do processo, o art. 266 do CPC veda a prática de qualquer ato processual, com a ressalva dos urgentes a fim de evitar dano irreparável.

A lei processual não permite, desse modo, que seja publicada decisão durante a suspensão do feito, não se podendo cogitar, por conseguinte, do início da contagem do prazo recursal enquanto paralisada a marca do processo.

Ao homologar a convenção pela suspensão do processo, o Poder Judiciário criou nos jurisdicionados a legítima expectativa de que o processo só voltaria a tramitar após o prazo convencionado. Por óbvio, não se pode admitir que, logo em seguida, seja praticado ato processual de ofício – publicação de decisão – e, ademais, considerá-lo como termo inicial do prazo recursal.

Desse modo, para o STJ, a conduta de publicar a decisão no período de suspensão do processo e de contar o início do prazo recursal caracterizou a prática de ato contraditório por parte do magistrado. Assim agindo, o Poder Judiciário feriu a máxima nemo potest venire contra factum proprium, que é aplicável no âmbito processual (Segunda Turma. REsp 1.306.463-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 4/9/2012).

Como esse tema foi cobrado recentemente nas provas de concurso:

1. (Promotor/RR – CESPE – 2012) Determinada pessoa pode exercer um direito contrariando um comportamento anterior próprio, sem necessidade de observância dos elementos constitutivos da boa-fé objetiva. (      )

2. (PFN – ESAF – 2012) A proibição do venire contra factum proprium, corolário do princípio da boa-fé, impede que sejam adotadas posturas contraditórias no processo e constitui lastro para a teorização da preclusão lógica no processo civil. (      )

3. (Juiz Federal/TRF2 – CESPE – 2009 – adaptada) A boa-fé objetiva recomenda a verificação da vontade aparente das partes. (      )

4. (Juiz Federal/TRF2 – CESPE – 2009) Por se tratar de regra de conduta, a boa-fé objetiva da parte é analisada externamente. (      )

5. (Juiz Federal/TRF3 – CESPE – 2011) A consideração pelo juiz da possibilidade de existência de propósito protelatório do réu indica análise da situação conforme o princípio da boa fé processual, sob o ângulo objetivo. (      )

6. (Juiz Federal/TRF3 – CESPE – 2011) A configuração do abuso de direito exige o elemento subjetivo. (     )

7. (Juiz Federal/TRF3 – CESPE – 2011) De acordo com o STJ, a teoria dos atos próprios não se aplica ao poder público. (      )


Gabarito
1. E
2. C
3. C
4. C
5. C
6. E
7. E

Dizer o Direito!