Márcio André Lopes Cavalcante*
Foi publicada ontem (29/05) e já
está em vigor a Lei n.°
12.653/2012, que inclui um novo tipo no Código Penal: o crime de condicionamento
de atendimento médico-hospitalar emergencial.
Vamos conhecer um pouco mais sobre
esse novo delito:
Condicionamento de atendimento
médico-hospitalar emergencial
Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer
garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos,
como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de
atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se
resulta a morte.
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Posição topográfica
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O art. 135-A foi inserido no Capítulo
III do Título I do Código Penal.
Esse capítulo trata dos crimes
que envolvam “periclitação da vida e da saúde”.
Periclitar significa “correr
perigo”.
Este Capítulo III, portanto, traz
diversos crimes de perigo.
Desse modo, entendo que o art.
135-A, pelo menos em sua forma simples (caput), é um crime de perigo.
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Crime de perigo abstrato
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Penso que o art. 135-A é crime
de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência.
Assim, para a consumação do delito
basta a prática da conduta típica pelo agente, sem ser necessário demonstrar
que houve, concretamente, a produção de uma situação de perigo.
Pela simples redação do tipo percebe-se
que não se exige a demonstração de perigo, havendo uma presunção absoluta (juris et de jure) de que ocorreu
perigo pela simples exigência indevida.
Vale ressaltar que, apesar de
haver polêmica na doutrina, o STF entende que:
“A criação de crimes de perigo
abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte
do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em
abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais
eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter
coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas
amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais
adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico,
o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito
penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese,
transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de
inconstitucional.”
(HC 104410, Relator Min. Gilmar
Mendes, 2ª Turma, julgado em 06/03/2012)
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Bem jurídico protegido
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Vida e saúde das pessoas humanas.
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Sujeito
ativo
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Trata-se de crime próprio considerando
que somente pode ser praticado pelos responsáveis (sócios, administradores etc.)
ou prepostos (atendentes, seguranças, médicos, enfermeiras etc.) do serviço
médico-hospitalar emergencial.
Imaginemos o seguinte exemplo:
O diretor geral do hospital edita
uma norma interna determinando que todas as recepcionistas somente podem aceitar
a internação, ainda que de emergência, de pessoas que apresentem
cheque-caução.
Duas semanas depois, chega um
paciente em situação de emergência e a recepcionista do hospital faz a
exigência do cheque-caução como condição para que ele receba o atendimento
médico-hospitalar emergencial.
Quem cometeu o crime, o diretor geral ou a recepcionista?
Os dois. Pela teoria do domínio
do fato, o diretor-geral seria o autor intelectual e a recepcionista a autora
executora.
A recepcionista poderia alegar obediência hierárquica?
NÃO. A obediência hierárquica é
uma causa excludente da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa
(art. 22 do CP).
Ocorre que um dos requisitos
para que seja reconhecida a excludente pela obediência hierárquica é que deve
haver uma relação de direito público. Não incide essa excludente se a relação
for de direito privado, como no caso da relação empregatícia em um hospital
privado.
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Sujeito passivo
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Pessoa destinatária do
atendimento médico-hospitalar emergencial.
Atenção: se a exigência de
caução foi feita a um parente da pessoa que seria internada, a vítima é
apenas a pessoa que seria internada e não o seu parente. Isso porque o bem
jurídico protegido é a vida e a saúde da pessoa em estado de emergência. Desse
modo, não se trata de crime patrimonial, pouco importando de quem se exigiu a
caução.
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Tipo objetivo
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Exigir
·
cheque-caução
É um cheque normal (título de crédito) assinado pela
pessoa a ser atendida ou por terceiro (familiar, amigo, etc.) com determinado
valor ou mesmo com valor em branco e destinado a servir como garantia de
futuro pagamento das despesas que forem realizadas com o tratamento. Se as
despesas forem pagas, o cheque é devolvido; se não forem, o cheque é descontado.
·
nota promissória
Consiste em um título de crédito (documento escrito)
no qual uma pessoa (sacador) faz a promessa, por escrito, de pagar certa
quantia em dinheiro em favor de outra (beneficiário).
A nota promissória, neste caso, também funcionaria
como um instrumento de garantia de que as despesas médicas seriam pagas.
·
ou
qualquer garantia
Exs: fiança prestada por um parente do paciente; uma
joia dada em penhor; a exigência de que se passe o cartão de crédito para
desconto futuro, como é feito na locação de veículos.
·
bem como
o preenchimento prévio de formulários administrativos
O preenchimento prévio de formulários administrativos
é vedado porque muitas vezes eles escondem um contrato de adesão, com a
previsão de cláusulas abusivas. O paciente ou seus familiares, no momento de
desespero em virtude da enfermidade, é compelido psicologicamente a assinar sem
ter o necessário discernimento quanto ao conteúdo do documento.
·
como
condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.
Segundo o Conselho Federal de Medicina, emergência é
a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco
iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico
imediato (art. 1º, parágrafo 2º, da Resolução CFM n.° 1451/95).
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Preenchimento
prévio de formulários administrativos
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O tipo penal incrimina também a
conduta de se exigir o preenchimento prévio de formulários administrativos
como condição para que seja prestado o atendimento médico-hospitalar
emergencial.
Deve-se alertar, contudo, que é
possível imaginar que, em alguns casos, seja lícita a exigência de prévio
preenchimento de formulários administrativos, nas hipóteses em que essa
imposição for imprescindível para a saúde e a vida do paciente ou para
resguardar a equipe médica que faz o atendimento.
É o caso, por exemplo, do
fornecimento de informações relacionadas com o tipo sanguíneo da pessoa a ser
atendida, caso seja imediatamente constatada a necessidade de uma transfusão
de sangue.
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Exigência
de garantia após o atendimento médico-hospitalar de emergência
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Pessoa sofre acidente e é
levada para hospital particular, onde é prontamente atendida, sem que seja
feita qualquer exigência.
Após cessar o quadro de
emergência do paciente, o responsável pelo hospital procura os familiares,
apresenta a tabela de valores dos serviços do hospital e exige um
cheque-caução para que o paciente continue internado. Esse responsável pelo
hospital praticou o delito do art. 135-A?
NÃO, trata-se de conduta
atípica. Somente é crime a exigência como condição para o atendimento
médico-hospitalar emergencial.
Não havendo mais situação de emergência, ainda que o paciente continue
necessitando dos serviços médico-hospitalares, é lícita a exigência de
garantias para que o paciente continue recebendo o atendimento.
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Formas
de praticar o delito
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O crime somente pode ser
praticado de forma comissiva (por ação), não sendo possível ser perpetrado
por omissão.
No entanto, trata-se de crime
de execução livre, podendo ser realizado de modo verbal, gestual ou escrito.
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Tipo subjetivo
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O crime somente é punido a
título de dolo.
Não há previsão de modalidade
culposa.
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Consumação
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O crime é formal. Logo, consuma-se
com a simples exigência.
A consumação ocorre no exato instante
em que é exigida a garantia ou o prévio preenchimento do formulário
administrativo como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.
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Tentativa
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É possível, em tese, a
tentativa. Trata-se, contudo, de difícil ocorrência na prática.
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Caso hipotético
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“A” está sofrendo um ataque cardíaco e é levado por seu irmão “B”, ao
hospital. “B” para o veículo na porta do hospital para que “A” desça e dê
entrada o mais rápido possível na emergência, enquanto ele vai estacionar o
veículo.
Em um período de tempo curtíssimo
(5 minutos, p. ex.), “B” consegue estacionar o automóvel e se dirigir à
entrada de emergência do hospital. Quando
lá chega, descobre que seu irmão ainda não foi internado porque a responsável
pelo hospital está exigindo a apresentação de um cheque-caução.
“B”, que é advogado, argumenta
fortemente que esta prática é abusiva, ameaçando formular representação contra
o hospital na Agência Nacional de Saúde Complementar, momento em que a
responsável autoriza a internação mesmo sem a garantia anteriormente exigida.
Nesse exemplo hipotético, haverá o crime do art. 135-A (tentado ou
consumado)? Haverá desistência voluntária? Haverá arrependimento eficaz?
Penso que nessa hipótese, haverá
o crime do art. 135-A consumado.
Não terá havido desistência
voluntária nem arrependimento eficaz.
As razões são as seguintes:
O delito do art. 135-A é formal,
logo, consuma-se com a simples exigência.
O fato de logo depois a
funcionária do hospital ter permitido a internação não importa para fins de
consumação considerando que a exigência já foi feita, completando o tipo
penal.
Na desistência voluntária (1ª
parte do art. 15, CP), o agente inicia a execução do crime e, antes dele se
consumar, desiste de continuar os atos executórios.
Não se trata de desistência
voluntária no exemplo dado, considerando que a execução já tinha se encerrado
e o crime se consumado com a simples exigência.
No arrependimento eficaz (2ª parte
do art. 15, CP), o agente, após ter consumado o crime, resolve adotar providências
para que o resultado não se consuma.
Ocorre que o resultado de que
trata o art. 15 do CP é o resultado naturalístico. Desse modo, somente existe
arrependimento eficaz no caso de crimes materiais, isto é, naqueles que exigem
a produção de resultado naturalístico. O delito do art. 135-A é, como disse, formal,
portanto, incompatível com o arrependimento eficaz.
O fato de o funcionário do
hospital ter permitido a internação, após a exigência inicial da caução, não
torna a conduta atípica, servindo apenas como circunstância favorável na
primeira fase de dosimetria da pena.
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Ação penal
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Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada (art. 100, CP).
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Pena
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Na forma simples (caput do artigo), a pena é de detenção,
de 3 meses a 1 ano, e multa.
Consequências:
·
Trata-se de crime de menor potencial ofensivo,
submetido, portanto, ao rito sumaríssimo (juizados especiais);
·
Não cabe prisão em flagrante (art. 69 da Lei n.° 9.099/95);
·
É possível
o oferecimento de transação penal (art. 76 da Lei n.° 9.099/95);
·
Cabe a suspensão condicional do processo (art.
89 da Lei n.°
9.099/95);
·
Não cabe prisão preventiva (art. 313, I, do
CPP);
·
Em caso de condenação, é possível, em tese, a
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44
do CP).
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Forma majorada
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O parágrafo único do art. 135-A
prevê duas causas especiais de aumento de pena (obs: não se trata de
qualificadora, mas sim de majorante):
Este parágrafo único constitui-se
em tipo preterdoloso, havendo:
·
dolo no antecedente (na conduta de fazer a
exigência indevida); e
·
culpa no consequente (na lesão corporal grave
ou morte).
Esta forma majorada não é
infração de menor potencial ofensivo.
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Dever de afixar aviso
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A Lei n.° 12.653/2012 previu ainda que o
estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar
emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente,
com a seguinte informação:
“Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou
de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários
administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar
emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal.
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Punição desta conduta por outros ramos do
direito
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A conduta punida por este novo
tipo penal já era sancionada pelos demais ramos do direito.
O Código de Defesa do
Consumidor (Lei n.°
8.078/90) prevê que é prática abusiva o fato do fornecedor de serviços se
prevalecer da fraqueza do consumidor diante de um problema de saúde.
Confira-se:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre
outras práticas abusivas:
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em
vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe
seus produtos ou serviços;
O Código Civil de 2002, por sua
vez, prevê o estado de perigo como vício de consentimento, apto a gerar a
anulabilidade do negócio jurídico. A doutrina civilista em peso classifica a exigência
de cheque-caução para atendimentos emergenciais em hospitais como típico
exemplo de estado de perigo.
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da
necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido
pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Por fim, no âmbito do direito
administrativo sancionador, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS,
agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, possui a Resolução
Normativa n.°
44, de 24 de julho de 2003, proibindo a prática nos seguintes termos:
Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos
prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou
referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras
Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota
promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à
prestação do serviço.
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* Juiz Federal Substituto (TRF da
1ª Região).
Foi Defensor Público, Promotor de
Justiça e Procurador do Estado.
Como citar este texto em
trabalhos científicos:
CAVALCANTE, Márcio André Lopes.
Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em:
http://www.dizerodireito.com.br. Acesso em: dd mm aa