Dizer o Direito

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A 2ª Turma do STF violou a cláusula de reserva de plenário ao afastar a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por tráfico de drogas?



A Lei n.° 8.072/90 prevê que o regime inicial no caso de condenações por crimes hediondos e equiparados deve ser, obrigatoriamente, o fechado. Vejamos:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.
(redação dada pela Lei n.° 11.464/2007)
Tem ganhado cada dia mais força a tese de que este § 1º do art. 2º é inconstitucional, assim como o era em sua redação original, por violar o princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF). Para entender melhor o assunto, vide o post que publicamosespecificamente sobre o tema.

Esta questão chegou até o STF. O que decidiu a Corte?

O Informativo 663 noticiou duas decisões antagônicas da 1ª e 2ª Turmas do STF sobre o regime inicial no caso de condenações por tráfico de drogas. Comparemos:

1ª Turma do STF:
Entendeu que, enquanto não houver pronunciamento definitivo por parte do Pleno do STF sobre a constitucionalidade, ou não, deste art. 2º, § 1º, deve-se aplicar, obrigatoriamente, o regime inicial fechado, tal qual previsto na Lei.

A ausência de pronunciamento definitivo por parte do Pleno do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade, ou não, do início de cumprimento da pena em regime fechado no crime de tráfico de drogas praticado na vigência da Lei 11.464/2007 não permite fixação de regime inicial diverso. (...)
HC 111510/SP, rel. Min. Dias Toffoli, 24.4.2012.

2ª Turma do STF
Afirmou que o art. 2º, § 1º da Lei 8.072/90 pode ser afastado se o condenado preencher os requisitos do Código Penal para ser condenado a regime diverso do fechado. Assim, de acordo com o que foi decidido, o regime inicial nas condenações por tráfico de drogas não tem que ser obrigatoriamente o fechado, podendo ser o regime semiaberto ou aberto, desde que presentes os requisitos do art. 33, § 2º, alíneas b e c, do Código Penal.

No crime de tráfico de entorpecente, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, bem assim a fixação de regime aberto são cabíveis. Essa a orientação da 2ª Turma ao conceder dois habeas corpus para determinar que seja examinada a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
No HC 111844/SP, após a superação do óbice contido no Enunciado 691 da Súmula do STF, concedeu-se, em parte, de ofício, a ordem, ao fundamento de que, caso o paciente não preenchesse os requisitos necessários para a referida substituição, dever-se-ia analisar o seu ingresso em regime de cumprimento menos gravoso.
No HC 112195/SP, reputou-se que o condenado demonstrara atender as exigências do art. 33, § 2º, c, do CP e, portanto, teria direito ao regime aberto.
HC 111844/SP, rel. Min. Celso de Mello, 24.4.2012.
HC 112195/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 24.4.2012.

Vale ressaltar que tal questão foi afetada ao Plenário do STF no HC 101284/MG, que deve decidir, em breve, de forma definitiva, acerca da constitucionalidade ou não do § 1º do art. 2º, da Lei 8.072/90, com a redação dada pela Lei 11.464/2007.

No entanto, a 2ª Turma do STF já vem decidindo pelo afastamento do § 1º do art. 2º há algum tempo, conforme se observa no seguinte julgado noticiado no Informativo 615:

Lei 8.072/90 e regime inicial de cumprimento de pena

A 2ª Turma concedeu habeas corpus para determinar ao juízo da execução que proceda ao exame da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou, no caso de o paciente não preencher os requisitos, que modifique o regime de cumprimento da pena para o aberto.
(...)
Em seguida, considerou-se que deveria ser superado o disposto na Lei dos Crimes Hediondos quanto à obrigatoriedade do início de cumprimento de pena no regime fechado, porquanto o paciente preencheria os requisitos previstos no art. 33, § 2º, c, do CP. Aduziu-se, para tanto, que a decisão formalizada pelo magistrado de primeiro grau: 1) assentara a não reincidência do condenado e a ausência de circunstâncias a ele desfavoráveis; 2) reconhecera a sua primariedade; e 3) aplicara reprimenda inferior a 4 anos. (...)
STF. Segunda Turma. HC 105779/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 8.2.2011

A pergunta que surge é a seguinte:
Ao afastar a aplicação do § 1º do art. 2º, da Lei 8.072/90 (com redação dada pela Lei 11.464/2007), a 2ª Turma do STF violou a cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal, considerando que a decisão não foi tomada pelo Plenário, mas sim por um órgão fracionário da Corte?

Com efeito, dispõe o art. 97 da CF/88:
Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.
Cumpre destacar que a decisão que afasta a incidência de um dispositivo legal (no caso o § 1º do art. 2º, da Lei 8.072/90) por reputá-lo incompatível com um princípio constitucional deve obedecer à reserva de plenário, conforme restou consagrado na Súmula Vinculante 10 do próprio STF:
Súmula Vinculante 10-STF: Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte.
Esta exigência da cláusula de reserva de plenário tem como objetivo conferir maior segurança jurídica para as decisões dos Tribunais, evitando que, dentro de um mesmo Tribunal, haja posições divergentes acerca da constitucionalidade um dispositivo, gerando instabilidade e incerteza.

Existem duas mitigações à cláusula de reserva de plenário, ou seja, duas hipóteses em que o órgão fracionário poderá decretar a inconstitucionalidade sem necessidade de remessa dos autos ao Plenário (ou órgão especial):
a) quando o Plenário (ou órgão especial) do Tribunal que estiver decidindo já tiver se manifestado pela inconstitucionalidade da norma;
b) quando o Plenário do STF já tiver decidido que a norma em análise é inconstitucional.

Contudo, o Plenário do STF ainda não decidiu sobre a constitucionalidade do § 1º do art. 2º, da Lei 8.072/90, com a redação dada pela Lei 11.464/2007, razão pela qual não se pode afirmar que no presente caso não seria necessária a observância da regra do art. 97 da CF.

A cláusula de reserva de plenário é aplicada ao próprio STF? 
O art. 97 da CF destina-se também ao STF?
Se você consultar a quase totalidade dos livros de Direito Constitucional, eles irão afirmar que sim. Pensamos, inclusive, que este posicionamento é correto, considerando que a função precípua do STF é a de garantir a supremacia da Constituição e a segurança jurídica, evitando decisões conflitantes de suas Turmas sobre a validade de dispositivos constitucionais (como no caso concreto), o que ocasiona enorme instabilidade, além de tratamento desigual para pessoas em situações iguais.

No entanto, deve-se alertar que existe um precedente da 2ª Turma do STF no qual a Min. Ellen Gracie afirma expressamente que a cláusula da reserva de plenário não se aplica ao STF:
(...) 4. O STF exerce, por excelência, o controle difuso de constitucionalidade quando do julgamento do recurso extraordinário, tendo os seus colegiados fracionários competência regimental para fazê-lo sem ofensa ao art. 97 da Constituição Federal. (...)
(RE 361829 ED, Relatora Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 02/03/2010)
A 2ª Turma invocou este precedente nas decisões em que afastou o regime inicial fechado ao tráfico de drogas?
Ainda não foi disponibilizado o inteiro teor dos votos dos Ministros nos processos HC 111844/SP e HC 112195/SP (noticiados no Informativo 663 do STF). Contudo, se analisarmos o voto do Min. Gilmar Mendes no leading case HC 105779/SP, julgado em 8.2.2011, percebe-se que o eminente Ministro não menciona esta questão da cláusula de reserva de plenário.

Diante desse quadro, das duas uma: ou realmente o art. 97 não se aplica ao STF, ou então acreditamos que houve violação à cláusula de reserva de plenário.

Obs1: agradecemos o e-mail do amigo Arthur Oliveira questionando a respeito do tema, o que nos fez refletir sobre o assunto.

Obs2: o excelente livro do Prof. Marcelo Novelino (Direito Constitucional. 6ª ed. Editora Método, 2012, p. 269) foi o único que encontramos mencionando o precedente da 2ª Turma (RE 361829) que defende não ser aplicável a cláusula de reserva de Plenário ao próprio STF.
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