Dizer o Direito

quarta-feira, 14 de março de 2012

STF determina que Santa Catarina estruture sua Defensoria Pública no prazo máximo de 1 ano



Assistência jurídica integral e gratuita como direito fundamental dos hipossuficientes
Desde 1988, a Constituição Federal prevê, como direito fundamental do cidadão, que o Estado preste assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV).

Órgão público que detém a atribuição para assistência jurídica: Defensoria Pública
A Constituição também determina que esta assistência jurídica integral e gratuita seja prestada, pelo Estado, por meio de um órgão específico: a Defensoria Pública, conforme preconiza o art. 134: 
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Criação das Defensorias Públicas pelos Estados
Com a previsão da CF/88, os Estados que ainda não possuíam, foram instituindo gradativamente suas Defensorias Públicas.
Contudo, passados 23 anos da promulgação da CF/88, um único Estado ainda não organizou e estruturou sua Defensoria Pública: o Estado de Santa Catarina.

Previsão da Defensoria Pública na Constituição de Santa Catarina
A Constituição Estadual de Santa Catarina previu o seguinte:
Art. 104. A Defensoria Pública será exercida pela Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita, nos termos de lei complementar.
Lei Complementar 155/97 de Santa Catarina
Regulamentando este art. 104, foi editada a Lei Complementar catarinense n.° 155/97, cujo art. 1º estabelece:
Art. 1º Fica instituída, pela presente Lei Complementar, na forma do art. 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina, a Defensoria Pública, que será exercida pela Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita, organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina – OAB/SC.
Desse modo, ao invés de criar a Defensoria Pública, segundo o modelo estabelecido pelo art. 134, da CF/88, o Estado de Santa Catarina optou por manter um serviço de “Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita”.

O sistema de “Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita” de Santa Catarina funciona da seguinte forma: a OAB/SC organiza listas de advogados privados que estejam dispostos a prestar os serviços de defensor dativo e o Estado paga para esses profissionais pelas petições e atos processuais que eles participarem, segundo uma tabela previamente fixada.

Portanto, a LC 155/97 afirmou que os serviços da “Defensoria Pública” seriam exercidos pela “Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita”, formada por advogados privados dativos, organizados pela OAB-SC.

ADIs 3892 e 4270 propostas contra estes dispositivos
A Associação Nacional dos Defensores Públicos da União-ANDPU e a Associação Nacional dos Defensores Públicos-ANADEP ingressaram, no STF, com duas ações diretas de inconstitucionalidade contra o art. 104 da Constituição de SC e contra a LC 155/97 alegando que esta previsão de “Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita” violava o art. 134 da Constituição Federal.

Resultado do julgamento
O STF, no dia de hoje (14/03), julgou procedentes as duas ADI’s e declarou a inconstitucionalidade das referidas normas.
O Relator das ações foi o Min. Joaquim Barbosa.

Inconstitucionalidade formal
Inicialmente, o Relator observou que a LC 155/97 possui um vício formal de iniciativa.
O projeto de lei que originou esta lei foi apresentado por um Deputado Estadual, sendo que a iniciativa para legislar sobre a organização da Defensoria Pública em âmbito estadual é privativa do Governador do Estado, segundo a regra do art. 61, II, alínea “d”, da CF/88, aplicável aos Estados por força do princípio da simetria.
Art. 61. (...)
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
II - disponham sobre:
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
A União, por meio da Lei Complementar 80/94, editou as normas gerais sobre a Defensoria Pública estadual. Logo, cabe aos Estados, em lei de iniciativa do Governador, suplementar as normas gerais com aspectos regionais.

Como a LC 155/97 não foi apresentada pelo Governador do Estado, houve vício formal quanto à iniciativa.

Inconstitucionalidade material
O modelo catarinense viola o art. 134 da CF/88 porque não há, em SC, uma Defensoria Pública estruturada em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos.
Todo serviço de “assistência jurídica gratuita” é feito por advogados privados que atuam como dativos por força de parceria entre o Estado e a OAB.
Assim, a parceria com a OAB não é apenas uma forma de suplementar a Defensoria Pública ou de suprir eventuais carências desta.
Pelo contrário, a seccional da OAB naquele estado supostamente cumpre o papel que seria da defensoria. Não há outra defensoria em Santa Catariana, há apenas os advogados dativos indicados pela OAB”, observou o Relator.
Desse modo, de fato, não existe Defensoria Pública, nos moldes do art. 134 da CF, no Estado de Santa Catarina.

A assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública garante maior proteção ao hipossuficiente e à sociedade que o modelo de Defensoria Dativa
Segundo o Min. Joaquim Barbosa:
“Não se pode ignorar que enquanto o defensor público, integrante de carreira específica, dedica-se exclusivamente ao atendimento da população que necessita dos serviços de assistência, o advogado privado – convertido em defensor dativo – certamente prioriza os seus clientes que podem oferecer uma remuneração maior do que aquela que é repassada pelo estado, a qual observa a tabela de remuneração básica dos serviços de advogados”.
Essas observações, conforme o relator, sugerem que a criação de um serviço de assistência judiciária não pode ser vista apenas sob o ângulo estatístico “e muito menos da perspectiva da mera economia de recursos”.

Sistema de defensoria dativa de Santa Catarina não atuava na defesa dos interesses coletivos
Como uma demonstração da insuficiência dos serviços de defensoria dativa de SC, esta, ao contrário das Defensorias Públicas ao redor do país, não tinha atribuição para propor ações civis públicas. Como observou o Ministro Relator:
“Veja-se, a título de exemplo, o fato de que a defensoria dativa organizada pelo Estado de Santa Catarina com o apoio da OAB local não está preparada e tampouco possui competência para atuar, por exemplo, na defesa dos interesses coletivos, difusos ou individuais homogêneos dos hipossuficientes residentes naquele estado, atribuição que se encontra plenamente reconhecida à defensoria pública”.
Omissão contumaz
O Min. Celso de Mello acompanhou o relator e manifestou sua indignação com a “omissão contumaz” do Estado de Santa Catarina, que, 23 anos depois da promulgação da Constituição da República, se manteve inerte quanto à implantação da Defensoria Pública no estado, violando, “de modo patente”, o direito das pessoas desassistidas, “verdadeiros marginais” do sistema jurídico nacional.
“É preciso dizer claramente: o Estado de Santa Catarina tem sido infiel ao mandamento constitucional dos artigos 134 e 5º, inciso LXXIV, e essa infidelidade tem de ser suprimida por essa Corte”, afirmou o Min. Celso de Mello.
Para o decano do STF, não se trata de uma questão interna do Estado de Santa Catarina. “É uma questão nacional que interessa a todos, a não ser que não se queira construir a igualdade e edificar uma sociedade justa, fraterna e solidária”, destacou. O Ministro Celso de Mello ressaltou ainda a relevância das defensorias públicas como instituições permanentes da República e organismos essenciais à função jurisdicional do estado, e o papel “de grande responsabilidade” do defensor público “como agente incumbido de viabilizar o acesso dos necessitados à ordem jurídica justa”.

Conclusão
Desse modo, o STF entendeu que o art. 104 da Constituição de SC e a integralidade da LC 155/97 são inconstitucionais, não sendo possível substituir o modelo de Defensoria Pública previsto no art. 134 da CF/88 por um sistema de Defensoria Dativa que não protege efetivamente os direitos fundamentais dos hipossuficientes nem cumpre, na plenitude, as importantes atribuições da Defensoria Pública.

Efeitos da decisão
O STF, conforme autoriza o art. 27 da Lei n.° 9.868/99, conferiu efeitos prospectivos (pro futuro) para a decisão. Como assim?
A Corte decidiu que este sistema de “Defensoria Dativa e Assistência Judiciária Gratuita” de Santa Catarina deve durar, no máximo, por mais um ano, quando então os dispositivos contestados [artigo 104 da Constituição de Santa Catarina e Lei Complementar Estadual 155/97] perderão eficácia no ordenamento jurídico.
Em suma, como efeito prático, o Estado de Santa Catarina tem o prazo máximo de um ano para organizar e estruturar a Defensoria Pública, nos moldes do art. 134 da CF/88.

Como votaram os Ministros
Todos os Ministros presentes (estava ausente apenas o Min. Gilmar Mendes) consideraram inconstitucionais os dispositivos catarinenses.
O Min. Marco Aurélio, contudo, entendeu que a declaração de inconstitucionalidade deveria produzir efeitos ex tunc (retroativos) e, neste ponto, ficou vencido.

Duas observações finais decorrentes do julgado:
Observação 1:
O STF não afirmou que seria proibido completamente o sistema de defensoria dativa, ou seja, é possível que continue existindo defensores dativos enquanto a Defensoria Pública ainda não estiver completamente estruturada em todo o Brasil.
Apesar de o STF não ter afirmado isso expressamente, conclui-se que se trata de uma espécie de “inconstitucionalidade progressiva”, ou seja, a utilização de defensores dativos ainda é constitucional, desde que ocorra como uma forma de suplementar a Defensoria Pública ou de suprir eventuais carências desta enquanto ainda não estruturada a Instituição.
Nesse sentido, o STF, recentemente, decidiu que a Defensoria Pública de São Paulo poderá continuar realizando convênios (não obrigatórios nem exclusivos) com a OAB e outros organismos para auxiliar o órgão na assistência jurídica dos hipossuficientes (ADI 4163/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 29.2.2012).

Observação 2:
Este julgamento do STF reforça o desenvolvimento de mais uma faceta do princípio do “Defensor Público Natural”, previsto legislativamente no art. 4º, IV, da LC 80/94.
Segundo esta concepção do princípio, o hipossuficiente possui direito fundamental de ter a assistência jurídica integral e gratuita prestada por Defensores Públicos que ocupem cargos de carreira, que gozem da garantia da inamovibilidade e que sejam proibidos de exercer a advocacia fora das atribuições institucionais (§ 1º do art. 134 da CF/88).
Trata-se de garantia fundamental do hipossuficiente porque somente este modelo, idealizado pelo constituinte de 1988, é o capaz de assegurar a efetiva proteção dos interesses do cidadão carente. A assistência jurídica deve ser prestada, portanto, por profissionais eficientes (concursados), com dedicação exclusiva (vedada a advocacia), que gozem de estabilidade (cargos de carreira), autonomia funcional e liberdade de atuação inclusive contra os interesses do Poder Público que os remunera (inamovíveis).
A faceta mais conhecida do princípio do “Defensor Público Natural” preconiza que o hipossuficiente tem direito de ser assistido juridicamente por um Defensor Público cuja designação para atuar esteja previamente definida em normas objetivas.

14/03/2012. Hoje é um dia histórico na luta pela efetivação da Defensoria Pública no Brasil.


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