O STF definiu na última
quinta-feira (09/02/2012) pontos muito importantes sobre a Lei n.° 11.340/06, que trata
sobre violência doméstica, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”.
Os Ministros julgaram em conjunto
duas ações relacionadas com a Lei Maria da Penha:
- A ADC n.° 19, proposta pela Presidência da República, que tinha como objetivo declarar constitucionais os arts. 1º, 33 e 41;
- A ADI n.° 4.424, proposta pelo Procurador-Geral da República, para o fim de dar interpretação conforme aos arts. 12, inciso I, 16 e 41, ambos da Lei nº 11.340/2006, e assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico.
Vejamos as principais questões
decididas pelo STF:
Análise
do art. 1º da Lei Maria da Penha:
Não há violação do princípio
constitucional da igualdade no fato de
a Lei n.°
11.340/06 ser voltada apenas à proteção das mulheres.
|
A Presidência da República
ingressou com uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC n.° 19) com o objetivo de declarar
que o art. 1º da Lei seria constitucional.
O art. 1º da Lei estabelece:
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela
República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
A ADC foi necessária porque
havia alguns juízes estaduais que declaravam inconstitucional a Lei Maria da
Penha porque elas fariam discriminação entre homem e mulher ao protegerem
apenas as mulheres em detrimento dos homens.
A ADC foi julgada procedente
por unanimidade, ou seja, o STF declarou constitucional
o art. 1º da Lei, afirmando que não há violação ao princípio da igualdade.
Dessa feita, conclui-se que a
Lei Maria da Penha somente protege a mulher.
O homem até pode ser vítima de
violência doméstica e familiar (ex: homem que apanha de sua esposa). No
entanto, somente a mulher recebe uma proteção diferenciada. O homem recebe a proteção
comum prevista no Código Penal.
A mulher, conforme o Relator,
Min. Marco Aurélio, é vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos,
morais e psicológicos sofridos em âmbito privado. “Não há dúvida sobre o histórico de discriminação por ela enfrentado
na esfera afetiva. As agressões sofridas são significativamente maiores do
que as que acontecem – se é que acontecem – contra homens em situação similar”,
avaliou.
O Relator afirmou que a Lei
Maria da Penha promove a igualdade em seu sentido material, sem restringir de
maneira desarrazoada o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino.
Assim, trata-se de uma ação
afirmativa (discriminação positiva) em favor da mulher.
O Min. Ayres Britto disse que a
Lei está em consonância plena com o que denominou de “constitucionalismo
fraterno”, que seria a filosofia de remoção de preconceitos contida na
Constituição Federal de 1988.
O Min. Gilmar Mendes lembrou
que não há inconstitucionalidade em legislação que dá proteção ao menor, ao
adolescente, ao idoso e à mulher.
Explicações adicionais do DIZER O DIREITO:
Igualdade formal e material
A igualdade formal (também
chamada de igualdade perante a lei, civil ou jurídica) está prevista no art.
5º, caput da CF/88 e consagra que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A igualdade material (igualdade
perante os bens da vida, substancial, real ou fática) preconiza que as
desigualdades fáticas existentes entre as pessoas devem ser reduzidas por
meio da promoção de políticas públicas e privadas. A igualdade material
também encontra previsão na CF/88 (art. 3º, III).
A igualdade material e a formal
acabam sendo conflitantes entre si.
Com efeito, a igualdade formal
pressupõe um tratamento igual. Quando se trata todos da mesma forma, está se
promovendo a igualdade formal, mas relegando a igualdade material.
Quando se trata desigualmente
os desiguais, promove-se a igualdade material em detrimento da igualdade
formal.
As ações afirmativas são
medidas especiais que têm por objetivo assegurar progresso adequado de certos
grupos raciais, sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de
proteção e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos
ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades
fundamentais (REsp 1264649/RS, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado
em 01/09/2011).
Desse modo, ao contrário do que
muitas pessoas pensam, as ações afirmativas não se restringem à proteção de
negros, mas também de mulheres e outros grupos.
|
Análise
do art. 33 da Lei Maria da Penha:
Nos locais em que ainda não tiverem sido estruturados
os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas
criminais acumularão as competências cível e criminal para as causas
decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Esta determinação, que consta no art. 33
da Lei, não ofende competência dos Estados para disciplinarem a organização judiciária
local.
|
A ADC também tinha como
objetivo declarar constitucional o art. 33 da Lei, que prevê:
Art. 33. Enquanto não
estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer
e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada
pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será
garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o
julgamento das causas referidas no caput.
Havia uma corrente de juízes e
Desembargadores que defendia que este art. 33 da Lei violava os arts. 96, I,
a e 125, § 1º da CF:
· Art. 96. I, a: afirma que compete privativamente aos tribunais elaborar seus
regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias
processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos
respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos.
· Art. 125, § 1º: prevê que a competência dos
tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização
judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
Segundo o Relator, a Lei Maria
da Penha não implicou obrigação, mas a faculdade de criação dos Juizados de
Violência Doméstica contra a Mulher.
O art. 33 não cria varas
judiciais, não define limites de comarcas e não estabelece um número de
magistrados a serem alocados aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar.
Estes temas seriam concernentes às peculiaridades e circunstâncias locais.
O mencionado artigo apenas
faculta a criação desses juizados e atribui ao juiz da vara criminal a
competência cumulativa das ações cíveis e criminais envolvendo violência
doméstica contra mulher ante a necessidade de conferir tratamento uniforme
especializado e célere em todo o território nacional sobre a matéria.
Não há qualquer problema no
fato de a lei federal sugerir aos Tribunais estaduais a criação de órgãos
jurisdicionais especializados, tendo isso já ocorrido, por exemplo, com o Estatuto
da Criança e do Adolescente e com a Lei de Falência, cujas respectivas leis
recomendaram a criação de varas especializadas no julgamento de tais
matérias.
|
Análise
do art. 41 da Lei Maria da Penha:
Aos crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher não se aplica a Lei dos Juizados
Especiais (Lei n.° 9.099/95), mesmo que a
pena seja menor que 2 anos.
|
O art. 41 da Lei Maria da Penha
tem a seguinte redação:
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei
9.099, de 26 de setembro de 1995.
O STF decidiu que este art. 41
é constitucional e que, para a efetiva proteção das mulheres vítimas de
violência doméstica, foi legítima a opção do legislador de excluir tais
crimes do âmbito de incidência da Lei n.°
9.099/95.
Vale ressaltar que a Lei n.° 9.099/95 não se aplica nunca e para nada que se refira à Lei Maria da Penha.
Obs: o STJ interpretava este
art. 41 afirmando que a inaplicabilidade da Lei n.° 9.099/95 significava apenas
que os institutos despenalizadores da Lei dos Juizados é que não poderiam ser
utilizados na Lei Maria da Penha, ou seja, transação penal e suspensão
condicional do processo.
O STF foi além e disse que,
além dos institutos despenalizadores, nenhum dispositivo da Lei n.° 9.099/95 pode ser
aplicado aos crimes protegidos pela Lei Maria da Penha.
Desse modo, a Lei n.° 11.340/06 exclui de
forma absoluta a aplicação da Lei n.°
9.099/95 aos delitos praticados contra a mulher no âmbito das relações
domésticas e familiares.
Aqui o julgamento foi 10 x 1,
vencido o Min. Cezar Peluso.
|
Ponto
mais importante e polêmico da decisão:
Toda lesão corporal, ainda que de
natureza leve ou culposa, praticada contra a mulher no âmbito das relações
domésticas é crime de ação penal INCONDICIONADA.
|
||||
O crime de lesões corporais
está previsto no art. 129 do CP.
O Código Penal não diz que o
crime de lesões corporais é de ação pública condicionada.
Logo, quando lei não diz que
determinado crime é de ação pública condicionada, a regra é de que ele é de
ação pública incondicionada (art. 100, § 1º do CP).
Ocorre que a Lei n.° 9.099/95 afirmou, em
seu art. 88, que o crime de lesões corporais leves e culposas seria de ação
penal pública condicionada:
Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial,
dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões
corporais leves e lesões culposas.
Assim, por exemplo, quando, em
uma briga de bar, João desfere um soco em Ricardo, causando-lhe lesões
corporais leves, este crime é de ação penal pública condicionada, ou seja,
qualquer providência para apurar este delito e para dar início ao
procedimento criminal só se inicia se o ofendido (no caso, Ricardo) tiver
interesse e provocar os órgãos públicos (procurar a polícia ou o Ministério
Público).
Repita-se que, se não houvesse
este art. 88 da Lei n.°
9.099/95, a ação penal nos crimes de lesões corporais leves e culposas seria pública
incondicionada, considerando que o Código Penal não exige representação para
este crime (art. 129 c/c art. 100, § 1º do CP).
Antes do julgamento do STF, a
dúvida era então a seguinte:
As lesões corporais leves e culposas praticadas contra a mulher no
âmbito de violência doméstica eram de ação pública incondicionada ou
condicionada?
Em outras palavras, este art. 88 da Lei n.°
9.099/95 também valeria para as lesões corporais leves e culposas praticadas
contra a mulher no âmbito de violência doméstica?
Havia duas correntes sobre o
tema:
Antes do STF proferir o
julgamento que estamos analisando, quem primeiro teve que enfrentar a
discussão foi o STJ.
De início, o STJ entendeu que
se tratava de ação pública incondicionada:
HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane
Silva (Des. convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.
Ocorre que esse entendimento
mudou e o STJ passou a adotar, de maneira pacífica, a 2ª corrente, ou seja, de
que se tratava de ação pública CONDICIONADA.
Sustentava-se, dentre outros argumentos
que “não há como prosseguir uma ação
penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado
a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas.
Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito
facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de
Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor”
(REsp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para
acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010).
Na última quinta-feira (09/02),
o Pleno do STF julgou a questão e modificou novamente o panorama da
jurisprudência pátria.
O que decidiu o STF?
Qualquer lesão corporal, mesmo
que leve ou culposa, praticada contra mulher no âmbito das relações
domésticas é crime de ação penal INCONDICIONADA, ou seja, o Ministério
Público pode dar início à ação penal sem necessidade de representação da
vítima.
Em suma, o STF adotou a 1ª
corrente acima exposta.
O resultado do julgamento foi
10 votos a favor da tese, vencido apenas o Min. Cezar Peluzo.
Para a maioria dos ministros do
STF, se a ação penal fosse considerada condicionada esta circunstância acabaria
por esvaziar a proteção constitucional assegurada às mulheres.
|
Algumas consequências que vislumbramos ser decorrentes
deste entendimento do STF:
1) Se uma mulher sofrer lesões corporais no
âmbito das relações domésticas, ainda que leves, e procurar a delegacia
relatando o ocorrido, o delegado não deve fazer com que ela assine uma
representação, uma vez que não existe mais representação para tais casos.
Bastará que o delegado colha o depoimento da mulher e, com base nisso, havendo
elementos indiciários, instaure o inquérito policial;
2) Como já exposto acima, em caso de lesões
corporais leves ou culposas que a mulher for vítima, em violência doméstica, o
procedimento de apuração na fase pré-processual é o inquérito policial e não o
termo circunstanciado;
3) Se a mulher que sofreu lesões corporais
leves de seu marido, arrependida e reconciliada com o cônjuge, procura o
delegado, o promotor ou o juiz dizendo que gostaria que o inquérito ou o
processo não tivesse prosseguimento, esta manifestação não terá nenhum efeito
jurídico, devendo a tramitação continuar normalmente;
4) Se um vizinho, por exemplo, presencia a
mulher apanhando do seu marido e comunica ao delegado de polícia, este é
obrigado a instaurar um inquérito policial para apurar o fato, ainda que contra
a vontade da mulher. A vontade da mulher ofendida passa a ser absolutamente
irrelevante;
5) É errado dizer que, com a decisão do STF,
todos os crimes praticados contra a
mulher, em sede de violência doméstica, serão de ação penal incondicionada. Continuam
existindo crimes praticados contra a mulher (em violência doméstica) que são de
ação penal condicionada, desde que a exigência de representação esteja prevista
no Código Penal ou em outras leis, que não a Lei n.° 9.099/95. Assim, por exemplo, a
ameaça praticada pelo marido contra a mulher continua sendo de ação pública
condicionada porque tal exigência consta do parágrafo único do art. 147 do CP. O
que o STF decidiu foi que o delito de lesão corporal, ainda que leve, praticado
com violência doméstica contra a mulher, é sempre de ação penal incondicionada
porque o art. 88 da Lei n.°
9.099/95 não pode ser aplicado aos casos da Lei Maria da Penha.
6) Os arts. 12, I e 16, da Lei Maria da
Penha não foram declarados inconstitucionais. O que o STF fez foi tão-somente
dar interpretação conforme a Constituição a estes dispositivos, confirmando que
deveriam ser interpretados de acordo com o art. 41 da Lei. Em suma, deve-se
entender que a representação mencionada pelos arts. 12, I e 16 da Lei Maria da
Penha refere-se a outros delitos praticados contra a mulher e que sejam de ação
penal condicionada, como é o caso da ameaça (art. 147 do CP), não valendo para
lesões corporais.