Virgílio Afonso da Silva
Conrado Hübner Mendes
Artigo publicado originalmente no Jornal
“Folha de São Paulo”, edição de 11 de maio de 2009.
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Transmissões ao vivo e acórdãos
na internet, entre outras medidas, criaram um mito de transparência que precisa
ser desconstruído
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O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL vem
ocupando espaço crescente na cena política brasileira. Não há mais novidade
nessa constatação. Nesses últimos dias, porém, o tribunal foi destaque dos
noticiários não tanto por ter decidido mais um dos casos fundamentais de sua
agenda, mas pela discussão destemperada entre dois dos seus ministros,
transmitida pela TV e disponível na internet.
Esse fato despertou uma saudável
discussão sobre a conveniência da transmissão ao vivo dos julgamentos do
tribunal. No último dia 2 de maio, neste mesmo espaço, duas posições se
confrontaram.
De um lado, Carlos Velloso,
ex-ministro do STF, defendeu que o televisionamento não seja ao vivo, mas
editado conforme a relevância jurídica dos debates, de modo a manter o
prestígio e a imagem de austeridade do tribunal.
De outro, o professor Gustavo
Binenbojm argumentou que a iniciativa de restringir as transmissões evocaria a
tradição superada das cortes como "seitas secretas" e levaria a uma
perda de transparência possivelmente conquistada nos últimos anos, um exemplo
original para o mundo.
Essa pode ser uma das raras
oportunidades de estimular um bom debate público sobre os costumes decisórios
do STF, aspecto mal percebido e geralmente ofuscado pelos polêmicos casos
julgados diuturnamente pelo Supremo. Esse debate, no entanto, pode e deve ir
além da discussão sobre a transmissão de seus julgamentos pela TV (ao vivo ou
editados).
Parece-nos que a questão central é
outra: quais condições institucionais contribuem para que o tribunal alcance as
melhores decisões possíveis?
A transmissão ao vivo é apenas
uma entre muitas variáveis que determinam o modo pelo qual os ministros
interagem e decidem. Não pode ser discutida de forma isolada.
Não há espaço aqui para examinar
todas essas variáveis. Mesmo assim, como ponto de partida, vale a pena destacar
um senso comum equivocado que parece se esconder por trás de muitas discussões
sobre o STF.
Transmissões ao vivo e acórdãos
disponíveis na internet, entre outras medidas, criaram um mito de transparência
que precisa ser desconstruído. Ao contrário do que muitos tentam fazer crer,
publicidade e transparência não têm nenhuma relação direta e necessária com a
quantidade de julgamentos transmitidos pela TV.
Um tribunal constitucional
transparente é aquele que decide com base em argumentos transparentes, que não
disfarça dilemas morais por trás de retórica jurídica hermética, que não se faz
surdo para os argumentos apresentados pela sociedade. Em suma, é aquele que
expõe abertamente os fundamentos de suas decisões para que sejam escrutinados
no debate público.
Contudo, se nos perguntarmos o
que o STF pensa sobre várias das questões constitucionais relevantes,
dificilmente alguém saberá responder com precisão, a despeito da quantidade de
decisões disponíveis na internet e de julgamentos transmitidos pela televisão.
Com maior frequência, o que se
pode identificar nesse emaranhado de decisões, disponíveis às vezes quase em
tempo real, é tão-somente a soma de 11 decisões individuais, que não têm a
menor pretensão de construir uma posição institucional consistente. Ainda que a
dissidência interna possa ser saudável, ela não pode implicar uma falta de
compromisso com uma posição institucional.
O debate sobre a forma de decisão
no Supremo, sobre a ausência de uma voz institucional -em grande parte causada
pela insistência em privilegiar as vozes individuais de seus ministros-, é o
que mais importa. E, se consistência decisória é uma das maiores contribuições
que um tribunal como o STF poderia dar a uma democracia, pode-se dizer que ele
tem falhado nessa tarefa.
Embora a transmissão ao vivo de
suas sessões não seja a causa dessa falta de unidade institucional, não é
implausível especular que ela a intensifique. Se descobrirmos que é isso o que
ocorre, há que pensar a sério em alternativas. Todos temos palpites a respeito,
mas a resposta não é óbvia e exige mais estudo.
Saber se a discussão entre os
ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa fere a imagem do tribunal não é tão
relevante quanto o sintoma que esse episódio pode representar: alguns ministros
começam a aproveitar o "momentum" televisivo para dirigir-se exclusivamente
ao público externo, em vez de interagir entre si, no melhor espírito de uma
deliberação colegiada. Tornam-se celebridades, o que é perigoso.
Talvez estejam produzindo, a
título de uma sedutora transparência de superfície, um indesejável populismo judicial.
O tribunal vende uma e entrega o outro. E não percebemos.
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VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA é
professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP.
CONRADO HÜBNER MENDES é
professor licenciado da Escola de Direito da FGV-SP e da Sociedade Brasileira
de Direito Público.