Como é de conhecimento geral, algumas universidades públicas em nosso país adotam sistemas de cotas.
Por meio deste sistema, alguns alunos, por ostentarem características peculiares ligadas à cor, etnia, classe social ou por serem oriundos de escolas públicas tem direito a um percentual de vagas que não é submetido à concorrência ampla.
Sistema de cotas e ações afirmativas (affirmative actions)
O sistema de cotas é uma política pública relacionada com as chamadas ações afirmativas. Segundo o Ministro Joaquim Barbosa, as ações afirmativas consistem
em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade(Ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 06).
Conceito jurisprudencial de ações afirmativas:
As ações afirmativas são medidas especiais que têm por objetivo assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais (REsp 1264649/RS, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 01/09/2011).
Igualdade formal e material
A igualdade formal (também chamada de igualdade perante a lei, civil ou jurídica) está prevista no art. 5º, caput da CF/88 e consagra que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
A igualdade material (igualmente denominada de igualdade perante os bens da vida, substancial, real ou fática) preconiza que as desigualdades fáticas existentes entre as pessoas devem ser reduzidas por meio da promoção de políticas públicas e privadas. A igualdade material também encontra previsão na CF/88 (art. 3º, III).
A igualdade material e a formal acabam sendo conflitantes entre si.
Com efeito, a igualdade formal pressupõe um tratamento igual. Quando se trata todos da mesma forma, está se promovendo a igualdade formal, mas relegando a igualdade material.
Quando se trata desigualmente os desiguais, promove-se à igualdade material em detrimento da igualdade formal.
As ações afirmativas, também chamadas de discriminações positivas, são instrumentos para a realização da igualdade material.
Existem ações afirmativas previstas na CF e em atos infraconstitucionais
Exemplo de ação afirmativa prevista na CF: cotas para deficientes em concursos (art. 37, VIII).
Exemplo de ação afirmativa prevista em ato infraconstitucional: cotas para negros em universidades públicas.
As ações afirmativas previstas apenas na lei são constitucionais?
- STJ: SIM. Afirma-se que a possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos arts. 3º e 5º, da CF/88 e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.
- STF: ainda não examinou formalmente a questão, no entanto, deverá fazê-lo em breve uma vez que a questão já foi submetida ao regime de repercussão geral (RE 597285).
Vale ressaltar que, muito dificilmente, o STF julgará inconstitucional o sistema de cotas ou outras ações afirmativas.
Questão relevante do dia:
Questão relevante do dia:
Estabelecidas estas premissas, vamos à questão relevante do dia:
Determinada universidade federal (Universidade “X”) oferece um percentual de vagas para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas.
“Adriano”, pessoa economicamente hipossuficiente, estudou os três anos do ensino fundamental em uma escola particular, sendo, no entanto, aluno bolsista, não pagando mensalidade porque o referido colégio oferta determinadas vagas para estudantes carentes.
Após o resultado do vestibular, com base na pontuação obtida, “Adriano” tentou inscrever-se no curso que queria por meio das vagas destinadas a alunos oriundos de escolas públicas, no entanto, teve sua matrícula indeferida.
Diante da negativa, “Adriano” ingressou com ação judicial promovida pela Defensoria Pública alegando que é pobre e que somente estudou em escola particular por conta da bolsa de estudos.
Argumentou então que não poderia ser punido por ter sido beneficiado anteriormente com uma ação afirmativa promovida pela própria escola particular.
Alegou que o objetivo das cotas destinadas a alunos de escolas públicas seria beneficiar pessoas carentes, o que seria o seu caso.
Qual é a jurisprudência sobre o tema?
“Adriano” não terá direito a uma das vagas da cota destinada aos alunos oriundos de escolas públicas.
Este é o entendimento do STJ que afirmou que:
“não se pode interpretar extensivamente norma que impõe como critério a realização do ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública para abarcar instituições de ensino de outra espécie, sob pena de inviabilizar o fim buscado por meio da ação afirmativa.” (REsp 1206619/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 13/12/2011)
Vale ressaltar que, neste mesmo julgamento, a 2ª Turma do STJ deixou assentado que também não teriam direito à cota os alunos oriundos de escolas comunitárias, filantrópicas e confessionais (dirigidas por organizações religiosas), ainda que mantidas por convênio com o Poder Público.
Outro julgado mais antigo do STJ também foi neste mesmo rumo:
(...)4. Ações afirmativas são medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais, e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.5. A possibilidade de adoção de ações afirmativas tem amparo nos arts. 3º e 5º, ambos da Constituição Federal/88 e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, integrada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 65.810/69.6. A forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade e, no presente caso, as normas objetivas de acesso às vagas destinadas a tal política pública fazem parte da autonomia específica trazida pelo artigo 53 da Lei n. 9.394/96, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Portanto, somente em casos extremos a sua autonomia poderá ser mitigada pelo Poder Judiciário, o que não se verifica nos presentes autos.7. O ingresso na instituição de ensino como discente é regulamentado basicamente pelas normas jurídicas internas das universidades, logo a fixação de cotas para indivíduos pertencentes a grupos étnicos, sociais e raciais afastados compulsoriamente do progresso e do desenvolvimento, na forma do artigo 3º da Constituição Federal/88 e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, faz parte, ao menos - considerando o nosso ordenamento jurídico atual - da autonomia universitária para dispor do processo seletivo vestibular.8. A expressão "tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil", critério objetivo escolhido pela UFPR no seu edital de processo seletivo vestibular, não comporta exceção sob pena de inviabilização do sistema de cotas proposto.Recurso especial provido em parte.(REsp 1132476/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 21/10/2009)