Dizer o Direito

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Justiça tem decidido que pôquer não é jogo de azar



Jogo é diferente de aposta
O Código Civil brasileiro regulamenta, nos arts. 814 a 817, os contratos de jogo e de aposta. Apesar de serem tratados no mesmo capítulo, jogo e aposta possuem distinções:

Jogo
Aposta
Jogo é o ajuste em que duas ou mais pessoas prometem, entre si, pagar certa quantia ou entregar determinado bem àquela que sair vencedora na prática de determinada competição que os contratantes combinam.
Aposta é o ajuste em que duas ou mais pessoas prometem, entre si, pagar certa quantia ou entregar determinado bem àquela cujo ponto de vista a respeito de fato praticado por outrem se verifique ser o verdadeiro.
O êxito ou o insucesso dependem da atuação de cada jogador.
Leva a quantia ou o bem prometido àquele que for melhor na competição.
O êxito ou o insucesso dependem da atuação de terceiros.
Leva a quantia ou o bem prometido àquele cuja opinião a respeito de fato futuro e incerto prevalecer.
O resultado decorre da participação dos contratantes.
O resultado não depende das partes, mas de um ato ou fato alheio e incerto.
Exemplo clássico dessa distinção foi fornecido por um jurista estrangeiro chamado Tholl:
Encontrando-se dois indivíduos em jardim, observam dois caracóis em cima de uma mesa, fechando disputa sobre qual deles chegaria primeiro ao outro lado. A hipótese é de aposta. Mas, caso contrário, ou seja, se os indivíduos em questão colocarem os caracóis sobre a mesa, disputando qual chegará em primeiro lugar ao outro lado, haverá jogo.

Chegando mais próximo aos nossos tempos, indaga-se: uma luta do UFC é jogo ou aposta?
Depende. Para os lutadores que estão dentro do octógono, trata-se de um jogo. No entanto, para os expectadores que arriscam dinheiro tentando adivinhar qual lutador irá vencer o duelo, cuida-se de aposta.

Resumindo, no jogo, os jogadores participam do processo, podendo, em certos momentos, influenciar o resultado. Na aposta, não há participação dos apostadores, não tendo eles a menor possibilidade de influenciar o resultado.

Espécies de jogos ou apostas
Há jogos ou apostas proibidos, permitidos e tolerados.

Proibidos (ilícitos)
Permitidos (autorizados)
Tolerados
O resultado depende exclusivamente da sorte.
São, por isso, chamados de “jogos de azar”.
O resultado não decorre exclusivamente da sorte, sendo influenciado pela habilidade, força ou inteligência dos participantes.
O resultado não decorre exclusivamente da sorte, sendo influenciado pela habilidade, força ou inteligência dos participantes.
A pessoa que vence não pode ingressar com uma ação judicial compelindo a outra a pagar a quantia prometida.
A pessoa que vence pode ingressar com uma ação judicial compelindo a outra a pagar a quantia prometida.
A pessoa que vence não pode ingressar com uma ação judicial compelindo a outra a pagar a quantia prometida.
Sua prática, com intuito econômico, é punida como contravenção penal (art. 50 do Decreto-Lei 3.688/1941).
Sua prática é regulamentada e incentivada pelo Poder Público.
Sua prática não é regulamentada, mas apenas tolerada pelo Poder Público.
Exs: jogo do bicho, roleta do cassino, jogo de dados, víspora, bacará etc.
Exs: campeonatos esportivos autorizados pelo Poder Público (futebol, vôlei, boxe, sinuca, xadrez, dominó), Mega-Sena, Lotomania.
Exs: disputas informais de esportes, isto é, sem um campeonato regulamentado, “bolões de apostas entre amigos”.
Com exceção dos jogos proibidos, o que a Lei das Contravenções Penais pune não é o jogo em si, mas sim sua exploração econômica. O que não se permite é explorar jogo alheio, como fazem os cassinos. O simples fato de se jogar, mesmo que a dinheiro, é tolerado. Veja o que diz a Lei de Contravenções Penais:

Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941:
Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
§ 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos.
§ 2º Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, quem é encontrado a participar do jogo, como ponteiro ou apostador.

§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.

§ 4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público:
a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa;
b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar;
c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar;
d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino.

O pôquer é considerado um jogo de azar ou de habilidade?
A Justiça tem entendido que se trata de um jogo de habilidade.

O Conjur noticia que muitos campeonatos de “Texas Hold´em” (uma modalidade de pôquer), organizados pela Confederação Brasileira de Texas Hold´em (CBHT) foram protelados graças a liminares argumentando tratar-se de um jogo de azar. A exemplo disso, em 2010 não foi concedido alvará para realização de um campeonato de pôquer no Costão do Santinho Resort & Spa, em Florianópolis. Tal negativa obrigou os organizadores a entrarem com Mandado de Segurança na Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, onde o torneio foi liberado (http://www.conjur.com.br/2012-jan-14/poquer-jogo-habilidade-nao-azar-entende-justica-catarinense). Afirmou o Desembargador Relator Sérgio Roberto Luz em seu voto:

“Adianto, desde logo, que o pôquer não é jogo proibido porque não é de azar, assim como também não é legalmente permitido, vale dizer, não há lei a seu respeito, como existe em relação às diversas loterias, ou seja, trata-se tão somente de um jogo não proibido. Por conseguinte, resta proibida a aposta ou o jogo a dinheiro. Frisa-se, proibida é a aposta, não o jogo.
Oportunamente, salienta-se que o campeonato realizado não permite apostas em dinheiro, ou seja, para participar da competição o jogador paga uma determinada quantia e recebe um número de fichas, com valores fictícios, sendo vedada a aquisição de novas fichas ou apostas intervenientes. Sagra-se campeão do torneio não aquele que possuir o maior número de fichas, mas aquele que permanecer por último na mesa, verificando-se que o importante é não ser eliminado.
A premiação, neste caso, é o rateio dos valores arrecadados com as inscrições de acordo com os lugares ocupados pelos concorrentes ao final da competição.
Por conta disso, afasta-se qualquer suposição de que o campeonato em questão pudesse envolver apostas ou jogo a dinheiro, o que seria defeso por lei.
Apenas a título de exemplo, importa gizar que este evento ora em debate muito se assemelha aos nossos tradicionais campeonatos de dominó, onde os participantes pagam uma taxa de inscrição, sendo vedada qualquer aposta interveniente, e o prêmio para os vencedores é rateado conforme os valores arrecadados.” (MS 2010.047810-1).

Pesou na decisão do desembargador o fato do campeonato em questão não permitir apostas em dinheiro, ou seja, para participar da competição o jogador paga uma determinada quantia e recebe um número de fichas, com valores fictícios, sendo vedada a aquisição de novas fichas ou apostas intervenientes. Disse o Relator:

"Sagra-se campeão do torneio não aquele que possuir o maior número de fichas, mas aquele que permanecer por último na mesa, verificando-se que o importante é não ser eliminado. A premiação, neste caso, é o rateio dos valores arrecadados com as inscrições de acordo com os lugares ocupados pelos concorrentes ao final da competição". (MS 2010.047810-1).

Ao deferir a liminar, o desembargador utilizou-se de parecer de Miguel Reale Júnior para fundamentar sua decisão. Afirma trecho do parecer:

“Em suma, pode-se afirmar que no jogo de pôquer ganha aquele que combina lógica e sensibilidade, lógica para elaboração rápida de um juízo de probabilidades com as cartas abertas e o número de jogadores, devendo também avaliar as desistências ocorridas, ao que junta a necessidade de haver um poder de observação dos adversários e de saber dissimular sua própria situação.
Por isso, ganha o jogo aquele que, não só calcula as probabilidades, mas, também, sabe o momento certo psicologicamente de "blefar" e vencer sem ter cartas para tanto, bem como o que sabe o momento de se retirar diante da constatação de que o adversário, por suas características, não está a blefar, mas aposta por possuir cartas valiosas.
(...)
Em suma, o mais importante, o essencial para o sucesso no jogo de pôquer, especialmente em vista de ser um contínuo de várias rodadas, não é a sorte, mas a habilidade sob diversos aspectos, que vão do conhecimento matemático e das estratégias do jogo à capacidade de observação dos demais e do poder de dissimulação.”(http://www.conjur.com.br/2012-jan-14/poquer-jogo-habilidade-nao-azar-entende-justica-catarinense)

Também contribuiu para o resultado do julgamento, laudo elaborado pelo conhecido perito Ricardo Molina, no qual ele constata que o quesito habilidade é decisivo nesse jogo e que o “blefador”, para saber o momento certo de tentar a artimanha do blefe, deve: avaliar as cartas dos oponentes; o padrão de reação dos mesmos; o tamanho do valor apostado; a sua posição na mesa, pois quanto mais ao final da roda melhor para observar. Assim, conclui o perito que a habilidade é decisiva para o sucesso, e não a sorte (http://www.conjur.com.br/2012-jan-14/poquer-jogo-habilidade-nao-azar-entende-justica-catarinense).

Vale ressaltar que o jogo de pôquer, por não ser de azar, é tolerado, mas as apostas são proibidas, conforme ressaltado neste julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
(...) 4. Jogo de pôquer.
4.1 O jogo de pôquer não é jogo de azar, pois não depende exclusiva ou principalmente da sorte (DL 3.688/41, art. 50, a), norma cujo rumo não pode ser invertido, como se dissesse que de azar é o jogo cujo ganho ou perda não depende exclusiva ou principalmente da habilidade. É o contrário. Diz que pode prevalecer é o fator sorte, e não que deve prevalecer o fator habilidade.
4.2 No pôquer, o valor real ou fictício das cartas depende da habilidade do jogador, especialmente como observador do comportamento do adversário, às vezes bastante sofisticado, extraindo daí informações, que o leva a concluir se ele está, ou não, blefando. Não por acaso costuma-se dizer que o jogador de pôquer é um blefador. Por sua vez, esse adversário pode estar adotando certos padrões de comportamento, mas ardilosamente, isto é, para também blefar. Por exemplo, estando bem, mostra-se inseguro, a fim de o adversário aumentar a aposta, ou, estando mal, mostra-se seguro, confiante, a fim de o adversário desistir. Em suma, é um jogo de matemática e de psicologia comportamental.
4.3 Conforme o art. 814, § 2º, do CC, há jogo proibido, jogo não-proibido e jogo legalmente permitido, sendo que apenas em relação a este a aposta é lícita. Considerando que o pôquer não é jogo proibido porque não é de azar, e considerando que também não é legalmente permitido, vale dizer, não há lei a seu respeito, como existe em relação às diversas loterias, trata-se de jogo não-proibido; logo, proibida a aposta, o jogo a dinheiro. Proibida é a aposta onerosa entre os jogadores, não o jogo.
4.4 Se no interior de Clube de Pôquer ocorre jogo mediante apostas onerosas, acontece atividade ilícita. O caso é de aposta ilícita, não de jogo ilícito. Assim, se pretende continuar na ilicitude ou permitindo práticas ilícitas, no mínimo de natureza civil, em seu recinto, óbvio que o fundado receio não se baseia em ato injusto ou ilegal das autoridades, desmerecendo, pois, a proteção via mandamus preventivo.
5. Dispositivo. Mandado de segurança denegado.
(Mandado de Segurança Nº 70025424086, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 17/12/2008)

Referências bibliográficas:

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. Vol. 3. Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 8ª ed., 2011.

MENDONÇA, Camila Ribeiro de. Justiça de SC não entende pôquer como jogo de azar. CONJUR. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jan-14/poquer-jogo-habilidade-nao-azar-entende-justica-catarinense>. Acesso em: 14/01/2012


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