Amianto
O amianto é uma substância muito utilizada na indústria, mas
com alto grau de periculosidade à saúde dos trabalhadores e dos consumidores
dos produtos que o contenham.
Em nível federal, a utilização do amianto é tratada pela Lei
nº 9.055/95.
Esta Lei, em seu art. 1º, proibiu a extração, a produção, a
industrialização, a utilização e a comercialização de todos os tipos de
amianto, com exceção da crisotila, vedando, quanto a essa espécie, apenas a
pulverização e a venda a granel de fibras em pó.
O art. 2º, por sua vez, autorizou a extração, a
industrialização, a utilização e a comercialização do asbesto/amianto da
variedade crisotila (asbesto branco) na forma definida na lei.
Desse modo, o art. 2º autorizou, de forma restrita, as
atividades com uma das espécies de amianto.
Lei estadual proibindo o amianto
O Estado de São Paulo editou a Lei
12.687/2007 proibindo completamente o uso de produtos, materiais ou artefatos
que contenham quaisquer tipos de amianto no território estadual:
Artigo 1º Fica proibido, a partir de
1º de janeiro de 2008, o uso, no Estado de São Paulo, de produtos, materiais ou
artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria
(CNTI) ajuizou ADI contra esta previsão alegando que a lei estadual seria
inconstitucional porque impôs uma restrição maior do que aquela que é prevista
em lei federal e, portanto, ela teria invadido competência privativa da União
para legislar sobre o tema.
Em outras palavras, a CTNI afirmou: a lei federal permitiu o
uso de amianto, desde que cumpridas algumas formalidades; já a lei estadual
simplesmente proibiu; logo, a lei estadual foi além daquilo que ela poderia.
Vale ressaltar que outras leis estaduais trouxeram
proibições semelhantes como essa do Estado de SP. Foram os casos, por exemplo,
dos Estados de Pernambuco e do Rio Grande do Sul.
O que o STF decidiu? Esta lei foi declarada inconstitucional?
NÃO.
As
leis estaduais que proíbem o uso do amianto são constitucionais.
O
art. 2º da Lei federal nº 9.055/95 é inconstitucional.
STF. Plenário. ADI 3937/SP, rel. orig.
Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 24/8/2017 (Info
874).
O tema é complexo e, por isso, vamos com calma. No início a
explicação vai parecer um pouco contraditória, mas no final tudo se aclara.
As leis estaduais que tratam sobre a proibição do amianto enquadram-se
em qual assunto, para fins de repartição de competências?
As leis estaduais que proíbem o uso do amianto são leis que
versam sobre:
• produção e consumo (art. 24, V, CF/88);
• proteção do meio ambiente (art. 24, VI); e
• proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88).
Dessa forma, são leis que tratam sobre assuntos de
competência concorrente.
No âmbito da competência concorrente, a União deverá editar
as normas gerais sobre os assuntos previstos no art. 24.
Os Estados-membros e DF, por sua vez, possuem a competência
para suplementar as normais gerais. Isso significa que os Estados-membros/DF
podem complementar a legislação federal editada pela União. Vale ressaltar que
as normas estaduais não podem contrariar as normas gerais elaboradas pela
União.
Somente na hipótese de inexistência de lei federal é que os
Estados exercerão a competência legislativa plena (art. 24, § 3º, CF/88).
Os Municípios, apesar de não estarem previstos no art. 24,
também poderão atuar nas matérias ali elencadas desde que para legislar sobre
assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal ou estadual no
que couber (art. 30, I e II, CF/88).
A Constituição de 1988, ao repartir as competências entre os
entes federativos, utilizou como critério o princípio da predominância do
interesse. Foram atribuídas à União as matérias e circunstâncias de interesse
geral, aos estados-membro, as de interesse regional, e aos municípios as de
interesse local.
A União, ao editar as normas gerais, não poderá esgotar toda
a disciplina normativa, ou seja, tratar de todos os aspectos daquele assunto a
ponto de fazer com que o Estado-membro fique sem competências. Da mesma forma,
não se pode admitir que a legislação estadual invada a competência da União e
discipline a matéria de forma contrária à norma geral federal.
A inobservância dos limites constitucionais impostos ao
exercício da competência concorrente, ou seja, a invasão do campo de atuação
alheio, implica a inconstitucionalidade formal da lei, seja ela federal,
estadual ou municipal.
Se uma lei estadual ou municipal, ao tratar de algum assunto de
competência concorrente, violar as normas gerais estabelecidas pela União,
neste caso, esta lei estadual/municipal será considerada ilegal (por violar a
lei federal) ou inconstitucional? Qual é o vício nesta hipótese?
O vício será de inconstitucionalidade. Esta lei estadual ou
municipal será inconstitucional.
“A norma estadual ou municipal é inválida não pelo fato de
contrariar materialmente a lei nacional, mas por, ao assim proceder, atuar fora
de sua competência constitucional de suplementar (complementar) as linhas
gerais definidas pela União.” (Min. Dias Toffoli, na ADI 3937/SP).
“A edição, por determinado Estado-membro, de lei que
contrarie, frontalmente, critérios mínimos legitimamente veiculados, em sede de
normas gerais, pela União Federal ofende, de modo direto, o texto da Carta
Política” (Min. Celso de Mello, na ADI 2.903/PB).
No âmbito da competência concorrente, uma lei estadual que esteja
suplementando a lei federal poderá estabelecer um tratamento mais restritivo
(rigoroso) do que aquele que foi imposto pelas normais gerais da União? Ex: a
União edita uma lei prevendo as normas gerais sobre controle da poluição (art.
24, VI); o Estado-membro poderá publicar uma lei suplementando as normais
gerais com tratamento ainda mais gravoso ao poluidor?
Depende. As normas suplementares podem ser mais restritivas
que as normas gerais federais. Os Municípios e Estados-membros podem ampliar a
proteção, estabelecendo novas restrições e condições ao exercício da atividade,
bem como regras de segurança e fiscalização mais exigentes, desde que não sejam incompatíveis com a norma geral. O que se deve
observar, portanto, caso a caso, é se as normas gerais editadas pela União dão
margem (liberdade) para que os Municípios e Estados-membros possam prever um
tratamento mais rigoroso.
Uma coisa, no entanto, é certa: os Municípios e
Estados-membros não têm competência legislativa para proibir uma atividade que
foi expressamente autorizada pela norma geral da União.
Ex: leis estaduais do Estado do Paraná proibiram o plantio e
a comercialização de substâncias contendo organismos geneticamente modificados
em seu território. Ocorre que as normas gerais fixadas pela União (Lei Federal
nº 11.105/05 - Lei da Biossegurança) permitem atividades envolvendo tais
organismos, desde que cumpridas determinadas regras de segurança e
fiscalização. Em virtude disso, tais leis estaduais foram declaradas
inconstitucionais pelo STF (ADI 3.035/PR e ADI 3.645/PR).
Vimos, no início da explicação, que o art. 2º da Lei Federal nº 9.055/95
autorizou, de forma restrita, as atividades com uma das espécies de amianto. A
Lei do Estado de SP poderia, em tese, ter proibido completamente o uso de todas
as formas de amianto?
NÃO. Se a lei federal admite, ainda que de modo restrito, o
uso do amianto, isso significa que a lei estadual ou municipal não poderia
proibi-lo totalmente. Ao agir assim, a lei estadual contrariou a norma geral
fixada pela União.
Repare que a Lei estadual simplesmente anulou todos os
efeitos do art. 2º da Lei Federal nº 9.055/95 no Estado de SP. O art. 2º dizia:
pode ser utilizado o amianto, desde que cumpridas as exigências. Aí veio a lei
estadual e afirmou: não pode usar nunca.
Devemos lembrar que a lei
estadual é para suplementar a norma geral e não para contrariá-la ou substitui-la.
Assim, em tese, a Lei do Estado de SP deveria ser
declarada inconstitucional pelo STF por ter invadido a competência da União.
Apesar disso, a Lei estadual não foi declarada inconstitucional. Por
quê?
Porque o STF considerou que o art. 2º da Lei nº 9.055/95 não
é, atualmente, compatível com a CF/88.
Nos dias atuais existe um consenso científico dos órgãos
nacionais e internacionais de proteção à saúde geral e saúde do trabalhador no
sentido de que a crisotila (espécie de amianto permitida pelo art. 2º da Lei nº
9.055/95) é altamente cancerígena, não se podendo falar que exista a
possibilidade de seu uso seguro.
Saúde pública
Todas as modalidades do amianto são classificadas pela
Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC), da Organização
Mundial da Saúde (OMS), como comprovadamente carcinogênicas para os seres
humanos.
De acordo com a OMS, não há possibilidade de uso seguro da
fibra, pois não há níveis de utilização nos quais o risco de câncer esteja
ausente, e a única forma eficaz para eliminar as doenças relacionadas com essas
fibras minerais é o abandono da utilização de todas as espécies de amianto.
No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, o amianto é
responsável por 1/3 (um terço) dos casos de cânceres ocupacionais e 80% das
pessoas morrem em um ano após o diagnóstico. Trata-se, portanto, de grave
problema de saúde pública.
Sistema previdenciário
O trabalhador exposto ao amianto se aposenta mais cedo, como
consequência da sua situação de morbidade acelerada, além do alto percentual de
requerimento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez em razão de
moléstias relacionadas ao amianto. Essa situação de morbidade acelerada e de
alto grau de incapacidade onera sobremaneira o sistema previdenciário.
Meio ambiente
O uso de amianto também provoca riscos ao meio ambiente.
As características do amianto e a forma como ele se comporta
na natureza elevam o risco de contaminação.
Trata-se de uma substância que não é biodegradável, ou seja,
não existe nenhum micro-organismo que tenha condição de quebrar, de destruir,
de transformar essa fibra de alguma forma.
Dessa forma, ele permanece assim no meio ambiente, sem que
exista qualquer possibilidade de esse material ser incorporado a alguma
estrutura orgânica.
Convenção 162-OIT
Vale ressaltar que a Convenção nº 162 da Organização
Internacional do Trabalho, de junho de 1986 – internalizada pelo Brasil
mediante o Decreto nº 126/91, determina, em seu artigo 10, a substituição do
amianto por material menos danoso ou mesmo seu efetivo banimento, sempre que
isso se revelar necessário e for tecnicamente viável.
Observa-se, assim, que o Brasil assumiu o compromisso
internacional de revisar sua legislação e de substituir, quando tecnicamente
viável, a utilização do amianto crisotila.
Destaca-se que a Comissão das Comunidades Europeias, em
1999, proibiu o uso remanescente do amianto crisotila, passando a vigorar a
proibição a partir de janeiro de 2005 (Anexo I à Diretriz 769/69 EEC).
Na atualidade, mais de 66 países já baniram o uso de qualquer
espécie de amianto.
Materiais alternativos
Quando a Lei nº 9.055/95 foi editada, o Brasil não dispunha
de produto qualificado para substituir o amianto crisotila. No entanto, hoje já
existem materiais alternativos.
O PVA, por exemplo, passou a ser produzido no Brasil a
partir de matéria-prima nacional, o fio de polipropileno, possibilitando a
substituição da crisotila.
Ressalte-se que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
e o Ministério da Saúde já recomendaram a substituição do amianto pelas fibras
de poliálcool vinílico (PVA) ou de polipropileno (PP).
Antigamente o art. 2º da Lei nº 9.055/95 era considerado
constitucional?
SIM. Havia precedentes do STF afirmando que esse dispositivo
era constitucional. A Corte, contudo, agora mudou de entendimento.
Dessa forma, pode-se dizer que o art. 2º da Lei federal nº
9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização e, no momento
atual, não mais se compatibiliza com a Constituição de 1988.
Algumas vezes pode acontecer de
uma lei que antes era reconhecida como constitucional agora ser considerada
incompatível com a Constituição. Esse fenômeno pode ocorrer, basicamente, por
duas razões:
Razões pelas quais pode ocorrer o processo de
inconstitucionalização de uma lei ou ato normativo
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1)
em virtude da mudança no parâmetro de controle (mudança na CF).
Isso
pode acontecer de dois modos:
1.1)
pela alteração formal do texto constitucional (houve uma emenda
constitucional e a lei antiga tornou-se incompatível com a nova redação);
1.2)
pela alteração no sentido da norma constitucional, ou seja, mudança na forma
como a CF é interpretada. Neste caso, tem-se aquilo que se chama de “mutação
constitucional”.
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2)
por força de alterações nas relações fáticas subjacentes à norma jurídica, ou
seja, mudanças no cenário jurídico, político, econômico ou social do país.
Interpretação
do STF a respeito do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 (Rcl 4374/PE, rel.
Min. Gilmar Mendes, 18/4/2013. Info 702).
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A Lei nº 9.055/95 passou por um processo de inconstitucionalização
em razão da alteração no substrato fático do presente caso (hipótese 2 do
quadro acima). Isso porque antigamente havia menos informações acerca dos
riscos do amianto do que existem atualmente, o que reforça a necessidade do
banimento de sua utilização.
Antes, falava-se na possibilidade do uso controlado da
crisotila (espécie de amianto permitida pelo art. 2º da Lei nº 9.055/95).
Atualmente, contudo, o que se observa é um consenso em torno da natureza
altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma
efetivamente segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e
internacionais que detêm autoridade no tema da saúde em geral e da saúde do
trabalhador.
A caracterização do que é seguro ou não à saúde depende do
avanço do conhecimento científico acerca da questão.
Enfim, se em 1995,
tolerava-se, sob certas circunstâncias e condições, a utilização da crisotila,
especialmente em razão da inexistência naquele momento de substitutivos,
atualmente, o consenso científico é no sentido da impossibilidade técnica do
uso seguro da crisotila e da existência de substitutivo idôneo.
Espera um pouco. A ADI havia sido proposta contra a Lei do Estado de
SP. O STF julgou a ADI improcedente e afirmou que a lei paulista é constitucional.
Ao mesmo tempo, o Supremo declarou que a Lei Federal nº 9.055/95, que nem
estava sendo impugnada, é inconstitucional. Isso é possível?
SIM. Embora a Lei federal nº 9.055/95 não estivesse
impugnada na ADI, a causa de pedir nas ações de controle concentrado é aberta e
“o STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade
formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a
inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão”
(Rcl 4374/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 4/9/13).
Em resumo:
O art. 2º da Lei federal nº 9.055/95 passou por um processo
de inconstitucionalização e, no momento atual, não mais se compatibiliza com a
Constituição de 1988, razão pela qual os estados passaram a ter competência
legislativa plena sobre a matéria até que sobrevenha eventual nova legislação
federal, nos termos do art. 24, §§ 3º e 4º, da CF/88.
Houve a inconstitucionalidade superveniente (sob a óptica
material) da Lei Federal nº 9.055/95, por ofensa:
• ao direito à saúde (art. 6º e 196, CF/88);
• ao dever estatal de redução dos riscos inerentes ao
trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, inciso
XXII, CF/88); e
• à proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88).
Um último esclarecimento:
No voto do Min. Dias Toffoli, mencionou-se que houve a
inconstitucionalidade superveniente da Lei Federal nº 9.055/95.
A utilização dessa expressão sempre gera
uma certa dúvida em muitos leitores. Isso porque a maioria das pessoas conhece
a concepção “tradicional” do que seja “inconstitucionalidade superveniente” e
pensa que ela é proibida. No entanto, essa expressão possui dois sentidos. Entenda:
INCONSTITUCIONALIDADE
SUPERVENIENTE
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Acepção
tradicional (entrada em vigor de uma nova CF e leis anteriores incompatíveis)
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Acepção
moderna (lei que sofreu um
processo
de inconstitucionalização)
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Significa que a lei ou ato
normativo impugnado por meio de ADI deve ser posterior ao texto da CF/88 invocado
como parâmetro.
Assim, se a lei ou ato
normativo for anterior à CF/88 e com ela incompatível, não se pode dizer que
há uma inconstitucionalidade. Nesse caso, o que existe é a não-recepção da
lei pela Constituição atual.
Logo, nesse sentido,
afirma-se que não existe no Brasil inconstitucionalidade superveniente para
se explicar que a lei anterior à 1988 e que seja contrária à atual CF não
pode taxada como “inconstitucional”.
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Significa que uma lei ou ato
normativo que foi considerado constitucional pelo STF pode, com o tempo e as
mudanças verificadas no cenário jurídico, político, econômico e social do
país, tornar-se inconstitucional em um novo exame do tema.
Assim, inconstitucionalidade superveniente,
nesse sentido, ocorre quando a lei (ou ato normativo) torna-se
inconstitucional com o passar do tempo e as mudanças ocorridas na sociedade.
Não há aqui uma sucessão de
Constituições. A lei era harmônica com a atual CF e, com o tempo, torna-se
incompatível com o mesmo Texto Constitucional.
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Não é admitida no Brasil.
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É admitida no Brasil.
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